sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Lenda Urbana

Conta-se por aí, em becos velhos, por bocas sujas, dentes amarelados, entre cigarros e cerveja, em tons lentos, calmos e mortais, sobre a história da Mulher Vermelha.
Não é uma lenda muito forte, isso é verdade, pois quem a vê uma vez quase nunca conta, tal é o horror do encontro. Os que falam, porém, são feitos loucos, ou viram catatônicos - a encarar o fundo da sala até chegar a ver por dentro da parede, naquela escuridão imensamente pequena, aonde tudo se perde e nada significa coisa alguma.
Diz-se que nada pode explicar a aparição da mulher.
Ela vem quando quer.
Contam-se vários casos, depende daonde você ouve a história, mas o mais famoso é o de Anita.
Anita era uma garota que, por fora, pareceria comum, mas, por dentro, ela tinha traumas maiores do que sua estatura possa transparecer.
Anita nunca conheceu o pai, pois ele deixou ela e a mãe antes dela nascer. "Foi arranjar emprego na mina, sabe?", dizia a mãe, sempre que o assunto surgia.
"O dinheiro já deve estar chegando...", dizia, e repetia aquele mantra de auto-enganação o tempo todo.
Vinte anos passam e ela se vê na faculdade, vendo o mundo, sustentando o ódio contra o pai que nunca vira. Aquele ódio cresceu e se transformou num ódio a todos os homens que conhecia, levando Anita a ter uma série de namorados em pouco tempo. Assim que um chegava, ela descobria mais e mais falhas nele, e fazia questão de apontá-las e destacá-las o tempo todo até que o coitado lhe largasse.
Anita descobriu que estava grávida naquele dia.
Passou a tarde trancada no dormitório da faculdade, chorando, sem saber o que fazer. O pai não queria nem saber dela - tinha deixado bem claro, ao deixá-la, "eu te odeio, sua puta, e eu me enojo de ter transado com você!". Ela também não tinha gostado muito - a idéia daquilo fazia ela se arrepiar de nojo -, mas ele insistiu. Fora tão insípida na cama como seria um peixe morto, e sabia disso.
Tinha feito de propósito.
Mas agora ela sentava na cama, com cinco testes de gravidez positivos no chão, o rosto inchado de tanto chorar.
Foi quando ela decidiu que não iria mais ligar para nada, iria sair e beber até não sentir mais o próprio cansaço, até não sentir mais Anita.


À noite, saiu para um bar no campus, sentou-se sozinha, pediu uma garrafa de uísque e metódicamente começou a beber.
Passaram-se alguma horas, chega o ex-namorado (pai da criança) e seus amigos, que a notam no momento em que entram no bar.
"Oooolha, quem aparece aqui!", diz um.
"Olha só quem resolve mostrar alguma emoção!", grita o ex, "'Tava chorando, princesinha?".
Ela não levanta os olhos da garrafa de uísque pela metade. Ele não está aqui, ele não está aqui.
"Responde, porra!", grita outro, mas ela não diz nada.
"Talvez ela só funcione a álcool", diz um terceiro, e joga um copo cheio de cerveja nela, rindo do próprio feito.
Ela fica encharcada da cerveja, e resolve não aguentar mais. Pega a garrafa de uísque e se levanta, indo para a porta, mas o ex-namorado a interrompe violentamente.
"Você não é ninguém, 'tá ouvindo? NINGUÉM!", grita, segurando os ombros dela e sacudindo-a com força.
"Some daqui, vadia!", grita um deles, e os outros gritam o mesmo, e ela vai embora.


A noite ia alta quando Anita vagava pelo campus vazio, segurando sua garrafa de uísque. Ainda ouvia os gritos do bar, mas eles iam ficando mais fracos à medida em que se distanciava deles.
Andou sem ver por onde até onde o uísque a pode levar, mas uma hora a garrafa acabou, e ela se sentou no chão, sem ver aonde, chorando.
Ela percebeu uma presença no ar, e levantou os olhos para ver a figura que se prostrava à sua frente.
Era um contorno que sugeria uma mulher toda de vermelho, com um lenço que escondia-lhe o rosto.
Ela tentou olhar para os seus pés, mas, dos joelhos para baixo, era tudo muito borrado para ver alguma coisa. Estou muito bêbada, pensou.
A mulher falou, numa voz rasgante, de gargantas secas, "Tem algum problema, minha criança?".
Anita só olhou para ela, depois para a garrafa de uísque vazia, e respondeu.
Contou-lhe seus problemas: sua mãe, o pai, o ex-namorado e seus amigos e o bebê.
Ou pelo menos pensou ter falado, àquela altura, ela estava tão fora de si que poderia ter somente pensado as palavras sem nunca dizê-las.
Mas a mulher responde, mesmo assim.
"Eu posso... Ajudar você", diz.
"Por um pequeno preço, você pode viver sem nenhum problema sequer...", e rompe-se numa risada restrita, como se o corpo não soubesse que estava rindo. A mulher de rosto coberto inclinava-se criando uma aura vermelha que pouco a pouco cobria a garota, e ela repete, como se concordando consigo mesma e admirando aquela oferta.
"Sim... Um pequeno preço...", diz ela.
"Qualquer... Qualquer coisa", diz a garota sonolenta, sem nem se dar conta de estar caindo no sono.
"Pois bem", responde a mulher.
Desaparece.


Anita acordou com sua cama molhada de sangue. Havia perdido o bebê durante a noite.
Sua colega de quarto chega e diz "não usou absorventes hoje?", mas o que quer dizer mesmo flutua até a superfície e ela trata de dizê-lo.
"Seu ex-namorado e os amigos... Bem, eles beberam muito durante a noite e saíram de carro", Eles estavam me procurando, pensa, mas não diz, porque não tem como justificar como ela sabe daquilo: ela só sabe.
"Oh, foi horrível, o carro deles bateu num caminhão e ele virou", ela diz, enquanto Anita tenta engolir a informação, "O motorista do caminhão viveu, mas eles...", não completa, mas Anita sabe exatamente o que aconteceu.
Eles foram procurá-la para pedir desculpas pelo o que eles fizeram, mas não encontraram em lugar nenhum do campus, então desitiram. Na volta, eles viram um vulto vermelho na estrada, tentaram desviar mas bateram no caminhão. Foram esmagados sem a menor chance de escapar.
Anita senta na cama suja de sangue, tentando descobrir o que viria a seguir.
De repente, seu celular toca. É a mãe.
Ela está tão feliz. As cartas finalmente chegaram, ela dizia, e tinha o dinheiro que o pai tinha ganhado na mina. Ela não sabia aonde ele estava, mas estava certa de que ele mandaria outras.
Mas Anita sabia o que acontecera.
Como mágica, ela via na cabeça o pai, velho, levantar-se de sua cama, sem olhar para esposa nem nada, sair de casa de pijamas, pegar a arma na gaveta, que guardava por segurança, viajar de carro por quilômetros até a cidade mais próxima, sacar dinheiro e enviar para a mãe.
E depois, claro, enfiar uma bala na própria cabeça.
Desligou o telefone e sentou na cama, admitindo o absurdo na cabeça. Foi aquela mulher de vermelho!, pensa, mas o que ela teria negociado em troca daqueles favores macabros?
E então, ela soube.


Anita fugiu de casa, de tudo e de todos.
Viveu como indigente por anos, afogando um buraco dentro de si com a bebida, mas sabia que nada adiantaria.
Quando a lembrança começou a enlouquecê-la, o município a mandou para um hospital psiquiátrico, aonde ela tentou se matar mais de quinze vezes, sem nunca conseguir.
Ela sabia, claro, que só morreria quando conviesse à Mulher Vermelha. Ela viria e lhe deixaria olhar os horrores escondidos debaixo do véu, e ela morreria, finalmente.
Mas, quando morresse, não iria nem para o céu, nem para o inferno.
Vagaria eternamente na sombra da Mulher Vermelha, junto com todos os outros tolos que obtiveram tudo o que desejavam.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

"Independentemente do que diga o seu confiável Timex" - Posfácio

Sempre quis fazer algo sobre esse assunto.
Não acredito nessa coisa de sobrenatural - assuntos não-resolvidos, aparições, possessões, et cetera -, mas acho que, para um contista amador como eu, o assunto é fascinante.
Espero não ter entediado vocês com a longa narrativa do velho - propositadamente sem nome -, que desdobra a história da vida dele e de sua esposa juntos até o trágico acontecimento (que de fato aconteceu) do final do verão de 1954.
Gosto de pensar que ela era um espírito à moda moderna, completamente ignorante à própria morte, sem um motivo para viver, com um monte de problemas internos como a ausência da própria memória.
Talvez o filho dela simplesmente já soubesse onde ela andava, e soubesse a mentira a que ela incubiu sua pós-vida - uma fantasia sem sentido de ser uma espiã, uma ladra, uma assassina, qualquer coisa.
Talvez ele já a tivesse visto por ai.
Ou talvez ele simplesmente soubesse que ela estaria aonde seu corpo estivesse.
Porquê ele pensou em trazer seu corpo está completamente fora do meu alcance enquanto escritor, e espero que cada leitor compreenda que nem mesmo eu tenho a resposta para todas as perguntas.
Vamos ficar com a explicação mais simples, que - eu acho - é a mais concreta.
Ele, fazendo um favor ao seu pai velho e doente, aceitou levar seu cadáver por aí na esperança de encontrar o fantasma da mãe, sem que ela soubesse que estava sendo levada não para cumprir um assassinato, para roubar um banco, espionar um grande empresário metido em problemas com a lei, mas para encontrar, no fundo de todas aquelas mentiras fantasiosas e desesperadas, uma verdade: já estava morta havia anos.
Pensando bem... Talvez não seja assim tão simples.
Eu gosto de um quê não-explicado no final das histórias. Deixa espaço para a imaginação do leitor.
Dá para perceber isso em praticamente cada um dos meus contos.
Quem poderá dizer que, em "O Porto e a Luz da Lua", David não simplesmente afogou toda a família enquanto ouvia na cabeça uma música que ouvira anos antes, num filme, na televisão, ou numa peça, e depois enlouquecera, inventando para si mesmo a história do homem no bote, que esperava-o para seu grand finale?
Afinal de contas, para qualquer pessoa fora dali, o que aconteceu foi um homem louco, suspeito de assassinato, que volta à cena do crime e se mata também.
Soa bastante convincente, não é?
Mas pode ser que tudo aquilo realmente tenha acontecido.
Não se trata de me esqecer dos detalhes, e ignorá-los completamente, não querendo sequer clicar em "editar" para encaixá-los.
Trata-se de que nem tudo na vida será explicado.
No final de "A Revolução dos Bichos", Orwell não gasta nem uma linha sequer explicando o que os bichos [SPOILERS] farão depois de verem homem e porco lutando entre si, sem poder identificar quem é quem [FIM DOS SPOILERS].
Por quê? Porque não é necessário. O motivo já foi mostrado, e a história acabou, ponto final.
No mesmo livro, o autor também não se dá o trabalho de dizer se [SPOILERS] toda aquela maldade e perfídia de que Bola-de-Neve fora acusado eram verdade - de derrubar o moinho até convencer algum dos donos das duas fazendas vizinhas a atacar a "Fazenda dos Animais"[FIM DOS SPOILERS].
Outro assunto interessante é sobre a citação de Stephen King estar errada.
Eu sei que o certo é "A lua está baixa e a hora é nenhuma", mas, quando a citação me ocorreu, por algum motivo que TAMBÉM está além dos meus poderes, eu pensei em "agora é noite e a hora é nenhuma".
Trata-se de uma inspiração adicional ao trecho original. Leitores mais astutos podem se perguntar "então porque você não mudou?". Ora, eu tinha me inspirado nessa frase, e, mesmo que Stephen King não a tenha escrito, eu ainda a atribuo a ele, mas ela tem um pouco de mim, pois metade dela veio da minha própria mente inquieta.
Concluindo, eu não quero receber comentários me perguntando sobre isso ou aquilo, sobre o que fez Cole, ao se ver órfão, ou sobre o que ele fez com o cadáver. Enterrou? Devolveu ao hospital? Colocou-o no seu armário e começou a cultuá-lo como uma espécie de ligação satânica entre o plano terreno e o plano celeste?
Sei lá...
Sei que, enquanto houverem quartas-feiras, eu vou continuar escrevendo - sendo lido ou não, até que alguém descubra meus cadernos cheios de rabiscos de cálculos e paragráfos soltos de contos que ainda não tomaram forma e resolva publicá-los (ou queimá-los).
Esperam que tenham gostado do conto (um bem longo, tenho de admitir).

"Independentemente do que diga o seu confiável Timex" - Parte Cinco e Final

"Não me leve a mal", disse o velho, naquela sala escura, "eu era um bom marido, e gosto de pensar que também fui um bom pai.
"Mas aquela moça... Ela precisava tanto de mim. Era como se eu fosse seu único porto seguro na vida.
"Eu sentia o que ela queria, mas não conseguia me afastar, porque ela era bonita, irreverente, inteligente, à frente de seu tempo, e, caramba! Eu gostava daquilo".
A mulher olhou para ele fixamente, e talvez nem tenha piscado, naqueles vinte segundos de fala. Estava hipnotizada por aquele contar de história; ou melhor, estava paralizada de medo.
Sentia as entranhas se revirarem, se afogarem gritarem. Sentia o coração batendo muito forte - sentia cada sístole e cada diástole nas pontas dos dedos, caídos no seu colo.
O subconsciente detectou um barulho vindo do lado de fora, mas disto a Charlotte acordada não tomou conta, somente percebeu que algo havia mudado quando o velho já estava a terminar seu conto.
"Estávamos no nosso quarto - meu e da minha esposa -, e sentávamos na cama, conversando. "Charlie tinha saído com as amigas, e eu já havia voltado para casa, pouco ligando para o que elas iriam fazer - esses momentos eram aqueles em que nós nos encontrávamos.
"'Tenho estado mais feliz, nesses dias', ela disse, ao que eu sorri e não falei nada, 'Nossas conversas me ajudam a suportar o meu marido, a vizinhança, a própria vida'. Eu sentia o mesmo, mas eu ainda amava minha esposa.
"Eu era jovem e tolo, e não percebi o erro que cometia ao vê-la inclinar-se pela cama e correspondê-la, inclinando-me também".
Fez-se silêncio por alguns segundos, até ele voltar a falar.
"Fizemos amor naquela cama como eu fazia a minha mulher, e fizemos duas vezes, maravilhados pela nossa capacidade primal de reproduzirmo-nos, sorrindo feito adolescentes".
"Ela entrou no começo da terceira, e o inferno aconteceu.
"Eu gritei os clichês, o discurso 'não é isso que você pensa', o discurso 'eu posso explicar', o discurso 'por favor, eu te amo!'".
O velhou soltou outra bufada gutural do fundo da garganta, ascendendo ao ar aquele cheiro podre de morte e bolor que vinha dele.
"E eu amava, mas fui idiota o bastante para deixá-la ir.
"Na mesma noite, os William saíram da vizinhança, mas não juntos. Anne foi para um hotel, daonde ela me ligou e me convidou a visitar, mas eu nunca fui. Não sei o que se fez do marido.
"Eu saí de casa envergonhado, fui sozinho a um motel de beira de estrada, onde chorei até dormir".
Charlotte ainda olhava para ele com uma sensação horrivel corroendo-lhe as pernas, as entranhas e a garganta.
No fundo de sua mente, uma porta se abria lentamente, deixando algo sair, uma luz estranha, por uma fresta, um canto não-explorado de sua mente.
Dessa vez, não era só a Charlotte pequena que tinha medo do sairia de lá. A Charlotte grande estava terrivelmente assustada.
"No dia seguinte, eu acordei no meu horário de sempre, disposto a consertar a besteira que tinha feito.
"Fui até a nossa casa, e deixei um bilhete, escrito e re-escrito tantas vezes até que saísse certo, e então fui ao trabalho".
O velho suspirou, sentindo o trabalho por vir.
"Foi durante o meu almoço que o verão de 54 entrou para a história.
"Todos os rádios repetiam a mesma coisa: 'Todos os moradores das áreas costeiras abriguem-se o mais cedo possível. O Governo declarou que as seguintes áreas serão afetadas [...]'.
"Era o Hazel".
Ele respirou fundo de novo, puxando mais ar do que nunca para seus pulmões velhos.
"O Hazel já tinha devastado o Canadá, mas ninguém esperava ele aqui!
"Ao ouvir o nome do nosso bairro eu corri para casa, mas eu não tinha meu carro próprio, então tive que ir por transportes públicos".
Uma pausa.
"O ônibus parou de rodar a poucas quadras de lá, e deu meia-volta, com medo do furacão, que já fazia sua presença ser notada.
"Os ventos horríveis, a chuva devastadora, tudo somava-se a um pesadelo sem fim.
"Corri até a casa. Estava tudo alagado, mas eu consegui entrar na casa sem cair na água.
"'Será que ela está bem?', 'Será que ela recebeu meu bilhete e saiu daqui?', 'Será que ela está abrigada?' foram perguntas que gritavam por respostas, perguntas que só o tempo responderia.
"Mas é claro que ela não ouviu o rádio!, pensei, Ela devia estar ouvindo música quando os anúncios sairam!, e eu simplesmente soube aonde você estava".
O velho engasgou, e Charlotte pulou para trás ao uso do pronome.
"E-eu?", disse, trêmula, "Não, não... Isso não é possível, eu sou muito mais nova do que..."
Mas era verdade.
Era verdade e ela sabia.
Charlotte - ou Charlie, na escola - sabia.
Ouviu-se contar o resto da história sem nem se dar conta, observando atônita enquanto a porta nos recônditos da sua mente se escancarava.
"Eu tinha chorado o dia todo, e, quando Joy Spring começara a tocar no rádio, eu desabei.
"Dormi ouvindo a música, na cama, pensando em você...".
O velho continuou.
"Cheguei e encontrei você na cama, gritei para que acordasse, disse que vinha aí o furacão que tinha destruído o Canadá, mas você não ouviu. Gritou que era um traidor, um mentiroso, um maldito que merecia morrer."
"E você saiu correndo, procurando Cole... Pegou ele no colo e gritou para que eu viesse também, mas eu não quis vir... Fiquei presa pela raiva que me tomava.
"Então o furacão apareceu, e qualquer discussão foi inútil".
Eles dois se encaravam, e o velho concluiu.
"Dos 357 prédios e casas em Long Beach, só cinco sobreviveram ao furacão. Nossa casa não foi uma delas.
"Lembro-me de ter me arrastado pelos escombros com Cole nos braços, que chorava, chorava e chorava, e eu procurava por você, mas você tinha desaparecido.
"Até agora".
Ela caiu para trás, tentando engolir tudo aquilo.
"Mas tarde, naquele dia, ouvi que o hotel em que Anne estava também foi destruído.
"No dia seguinte, procurando pelo seu nome da lista dos desaparecidos, encontrei o dela também, e soube imediatamente que ela tinha morrido.
"Assim como você".
Charlotte chorava copiosamente. Lembrava-se de tudo, mas nada explicava aquela situação.
"Fizemos um enterro simbólico, sem cadáver.
"Cole cresceu e eu me mudei para outro lugar, com menos memórias.
"Quando ele entrou na faculdade, eu me mudei para cá, e fiquei esperando por você, esses anos todos, esperando.
"Você por acaso se lembra do que havia no bilhete?"
Ela fungou um pouco e olhou para ele. Tirou então o papel que levava no bolso, e viu que ele estava branco, amassado e meio molhado, mas legível.
Nele, o velho tinha escrito:
"Eu te amo, e sempre te amarei.
"Por favor, perdoe-me. Eu sei que nunca vou ser bom o suficiente para te merecer, mas eu quero pelo menos tentar, pois é melhor tentar e fracassar do que nunca ter tentado. Vou fazer de tudo para recompensá-la.
"Encontre-me na praça aonde nos conhecemos, para podermos conversar melhor".
"É... aqui?", ela perguntou.
"Sim. Não sobrou muito dela, depois do furacão, então, na reconstrução, decidiram construir esses prédios aqui, fecharam a rua e a praça virou um monte de casa numa ladeira.
"Comprei essa assim que saiu. Era o meu jeito de manter minha promessa, porque te esperei, Charlie, te esperei".
"E eu vim..."
"Mãe, está na hora de ir", disse o homem que havia chegado minutos antes daquela revelação.
Ela se virou assustada e olhou. Era ele, o homem que dirigia a ambulância. Cole. E viu que na testa dele havia apenas uma cicatriz, uma marca de sua sobrevivência ao Hazel.
O velho se levantou, e Charlotte foi com ele, dizendo "Eu te perdôo, por tudo que fizeste, perdôo. Perdôo porque te amo", e beijou-lhe na boca, como uma fantasma beija um velho.
Mas, para eles, foi como se fossem jovens de novo, cheios de energia, cheios de espírito, cheios de esperança.
Chorando, ela saiu, da casa, e o velho ficou à porta.
Cole abriu as portas de trás da ambulância, e ela percebeu o quanto sua mente a havia enganado.
Não era uma criatura horrível, olhando-a com desprezo, querendo pegá-la.
Era o seu cadáver.
"Acharam há poucos dias", disse Cole, "Ninguém sabia quem era, mas eu soube imediatamente que era você".
"Como?", ela perguntou.
"A aliança", apontou, e ela viu que a aliança brilhava  incólume no cadáver seco e carcomido, algo de santo na podridão.
Ela olhou da aliança a Cole, e, dele, ao velho.
"Que horas são?", perguntou.
"Não sei", o velho respondeu.
"E que importa?", disse, chorando sem nem perceber.
Levantou os olhos e viu a lua.
Quando os abaixou, não estava mais lá.


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No dia seguinte, teve-se que o velho morrera no seu sono, na madrugada daquela quarta-feira.
O obituário dizia que os médicos situavam sua morte entre as três e as quatro da manhã, sem certeza, mas o melhor que se poderia dizer é que ele morrera de noite, e a hora era nenhuma.

sábado, 10 de dezembro de 2011

"Independentemente do que diga o seu confiável Timex" - Parte Quatro

"Aquele verão foi marcado pelo terror", disse o velho, se preparando para sua narrativa, enquanto Charlotte olhava e olhava. Na sua cabeça, ela recapitualava tudo o que podia lembrar daquele verão.
Lembrava-se de Joy Spring, lembrava-se dos tempos pós-guerra, lembrava do nacionalismo que lhes foram injetado naqueles anos.
Naquele tempo, ser americano vinha com obrigações da alma, e cada americano deveria pagar com o que tivesse, mesmo que não fosse nada. O dever ao capitalismo católico, contra a balbúrdia atéia socialista - como lhes era explicada - dominava tudo em suas vidas. É interessante como uma idéia política de lavagem cerebral possa ter sido fundida com uma idéia de lavagem cerebral religiosa, especialmente porque do outro lado do mundo (ou bem ao lado dos E.U.A) estavam os inimigos de escrita cirílica.
Os russos não eram diferentes, de fato. De um jeito, ou de outro, estavam todos embebedando os americanos e russos, jogando-os um contra o outro, como numa brincadeira infantil em que, caso algo desse errado, ninguém escaparia vivo.
Alienados e possuídos completamente pelas forças de ambos os lados, aquele tempo foi um verdadeiro inferno.
Mas o inferno só se fez sólido no final do verão de 54.
"Comprara-nos uma casa, como disse", o velho continuou, tirando Charlotte de seus pensamentos, "Tivemos um filho, e estávamos felizes como nunca.
"Fazia uma semana que morávamos lá, e resolvemos chamar os vizinhos para um brunch, você sabe, para conhecermo-nos melhor", disse, respirando fundo.
"O brunch foi uma beleza. Conhecemos os Jefferson, os Chance, os Gordon, e, é claro, os William.
"Não vou mentir", confessou, "Não lembro de nenhum dos rosto, nem dos Jefferson, nem dos Chance e nem dos Gordon.
"Essa cabeça velha só consegue se lembrar de Greg e Anne William". Ao dizer isso, ele soltou um barulho gutural do fundo da garganta, e Charlotte percebeu de repente a verdade tão óbvia. Está morrendo, pensou, e não vai durar muito.
Mas o velho se recuperou e recomeçou sua lenta narrativa.
"Anne era uma mulher dos anos oitenta presa na década de cinquenta, sim. Tão logo nos conhecemos, eu percebi que ela diferente das outras - caramba, diferente até da minha esposa!
"Mas não era ruim, era só... Diferente.
"E dava para perceber que Greg sabia disso também - e não gostava. Ele era um daqueles caras caipirões, um homem que nós podíamos visualizar perfeitamente capinando a grama e plantando milho.
"E batendo na esposa, é claro".
Charlotte engoliu em seco, querendo perguntar aonde ia aquela história, mas sem a coragem para fazê-lo. Querendo mas não podendo, ela ficou parada, na poltrona velha, ouvindo um velho enfermo contar um velha história empoeirada.
"Desde o príncipio, ela me parecera uma mulher interessante, mas eu não pude falar com ela durante o brunch, visto que era política dos anos cinquenta de que, numa reunião, as mulheres sairiam e falariam sobre o que quer que mulheres gostassem de conversar, enquanto os homens conversariam sobre negócios, política, e tudo mais que fosse desinteressante - eu queria era falar com ela.
"Depois do brunch, no dia seguinte, minha mulher saiu com as amigas recém-conquistadas ao salão de beleza, enquanto eu fiquei em casa, na minha primeira folga do trabalho.
"Cuidei de Cole até ele dormir, depois sentei-me no sofá da sala e pus-me a olhar o tempo passar, talvez dormir um pouco.
"Ao contrário disso, assim que me sentei no sofá, veio Anne à porta. Queria falar com Charlie.
"'Poderia me dizer aonde ela foi?', perguntou, e eu lhe disse que fora ao salão, com as outras da vizinhança.
"'É sempre assim', ela falou, tristonha, e eu perguntei por quê, ao que ela respondeu 'Eu nunca faço amizades, e elas nunca me convidam para nada. Meu marido se relaciona bem com os outros homens da rua, mas eu... Bem, a mim, elas ignoram'. Convidei-a a sentar-se no sofá, e ouvi-a falar sobre sua vida, até notar que ela tinha diversas manxas roxas nos braços e que ela tinha um olho roxo coberto de maquiagem, que só se revelara quando ela começou a chorar".
Ela olhou para a figura estranha do homem, velho e cansado, perscrutando o seu rosto amassado de velhice, tentando ver algo denunciador, mas não viu nada. O velho falava a verdade - e de que lhe adiantaria mentir?
"Ao longo das semanas, nós ficamos cada vez mais próximos, e ela foi se abrindo mais e mais para mim, contando sobre o marido.
"Foi dois dias antes do acontecimento que marcou o verão de 54 que tudo desabou".
Algo dentro de Charlotte gritava incessantemente que não queria ouvir aquela parte da história, que era ruim e que ela não devia, que ela não podia, que era errado, mas ela não deu ouvidos à Charlotte pequena, com medo do escuro e do que toma vida e forma no escuro, mas não ouviu-a não porque não concordava, porque queria ouvir o resto da historia. Não ouviu-a simplesmente porque não podia se mover, porque sua única opção era ficar e escutar.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

E foi-se o ano...

Acho que chega um ponto na vida de todo mundo em que esse tipo de coisa acontece.
Sabem, aquela coisa de separação, aquele sentimento de descer as escadas no escuro - será que o degrau ainda está lá? Aquilo de que cada caminho só pode ser trilhado a sós, e que, mesmo que fosse acompanhado não faria diferença - estaríamos ambos sozinhos e perdidos, um ao lado do outro.
Mais que isso, é o sentimento que bombardeia de que o mundo continuou o mesmo, o que muda é que um grupo de pessoas vai deixar de se reunir quase diariamente para fazê-lo em ocasiões tão escassas quanto... Bem, escassas.
Sei lá, acho que a ciência dos fatos não é completa por si só, falta algo, talvez o "cair a ficha" popular. Falta um desfecho.
Hoje poucos vieram, e muitos dos que eu queria me despedir não compareceram, então eu enterro um abraço no peito, junto com todo o resto.
Vou sentir saudade de cada um daqueles que fizeram-me rir, que me aceitaram nos seus grupos mesmo com minhas participações tão parcas, vou sentir saudade de verdade.
Vou sentir saudade da Aline sendo uma víbora cheia de opiniões.
Vou sentir saudade de Helena e sua boa vontade e seu sorriso contagiante toda manhã - ha-ha.
Vou sentir saudade do iPad de Carol - xD
Vou sentir saudade de Igor e suas piadas sem-graça e de nossas discussões sobre matemática.
De Luís e sua atitude de "tô nem aí pra isso mesmo", e é claro, do seu sorriso sarcástico e do bullying que fazia comigo.
Vou sentir saudade de ajudar Yuri na aula de matemática, e até mesmo das músicas que ele me passava, ou das teorias conspiratórias.
Vou sentir saudade - muita, muita mesmo- de Hannah, com seu estilo, suas frases, seu jeito "tenso" de ver a vida.
Vou sentir saudade de Maria Teresa - se não for assim que se escreve, desculpa - e suas malandragens e seus biscoitos e seus surtos - "quer brigar? A gente vai rolar aqui no chão é A-GO-RA!".
Vou sentir saudade tanta gente mais, que, por algum motivo ou outro, eu não lembro o nome, desde Vitória, que passou a falar comigo recentemente (última semana), até do pessoal do Expert.
Vou sentir falta de todos vocês.
Espero que vocês nunca me esqueçam também.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Minha aventura das três da manhã

Eu tinha acabado de ver um filme que passava na Warner, "A Esfera", e fui me deitar na cama.
Minutos se passaram lentamente, até eu perder a noção do tempo enquanto eu encarava o teto e o teto me encarava...
Então o cachorro da minha irmã - Chico - começou a latir da cozinha, preso por uma grade bem na entrada da cozinha. Eu pensei "o que faz um cachorro latir?", e minha mente tirou todas as possibilidades possíveis, e, naquele meio segundo, até fantasmas passaram na minha cabeça, apesar de eu ser um cético inveterado.
Concluí que ou não era nada ou eram ladrões.
O pensamento de que eu estivera assistindo televisão a poucos minutos, e de que eles só estavam esperando eu desligar tudo para entrarem passou pela minha cabeça voando, mas eu só o reconheci agora, enquanto escrevo esse texto.
Impressionante o que pensamos nesses momentos. Eu olhei em volta, de pé, no quarto iluminado pelo abajur e pensei em coisas absurdas e completamente aleatórias, que eu nem lembro mais.
Cogitei o perfume, o desodorante, uma maldita caneta!
Mas eu não tinha no quarto nada que pudesse me defender, e agora, acordado e pensando melhor, vejo que devo ter percebido isso mesmo no meu meio-transe, pois eu desisti da ideia pouco depois de olhar para os meus livros - muitos.
Estiquei a mão e fui à maçaneta.
Acendi a luz do quarto pensando "como raios eu vou me defender de pijamas?", mas isso não me impediu de abrir a porta do quarto. No segundo que levou para eu abrir a porta por completo e deixar a luz acesa do meu quarto irradiar o corredor escuro enquanto o cachorro latia na cozinha, eu vi a imagem clara e vivíssima do ladrão que esperava, com uma máscara e uma arma - uma faca? Mas não tinha ninguém, e eu deslizei para fora do quarto, até a cozinha, onde ele latia, e vi que ele estava bem na entrada da cozinha escura, e a parte racional da minha mente concluiu que não havia ninguém lá também, senão ele estaria encarando o invasor.
Não entrei na cozinha, mas fui até a sala de estar e acendi algumas luzes. Olhei em volta, senti, e não havia ninguém. Desliguei as luzes e fui voltando para o meu quarto, repassando na cabeça o que tinha acontecido nessa experiência banal.
No caminho, olhei para o cachorro e murmurei "controle-se", ao que ele respondeu um grunhido de cachorro.
Entrei no quarto, desliguei as luzes, sentei na cama.
A ideia de escrever sobre isso me veio nessa hora, e eu me levantei, agarrei uma caneta qualquer, e anotei numa cópia da prova do Michigan do ano passado "Escrever sobre o incidente!", e voltei para cama.
E foi assim que, até cair no sono e dormir, eu passei a noite pensando nas palavras que usaria nesse texto, das quais poucas ou nenhuma eu me lembro.



Tenham um bom resto de dia :)

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Girl, put your FUCKING RECORDS OOOOFF!

SÉRIO!
Essa música tá na minha cabeça há muito tempo!
Há mais tempo que essa música ficou quando eu vi o filme (e ela ficou por quase uma semana).
Ou será que o "just relaax, just relax" da Corinne me quer dizer algo?
Nossa, estará meu subconsciente me mandando parar e respirar? =O
=OOO

Ok, e se estiver?
Bem, recentemente eu tenho estado em bastante paz interna (exceto por certas atribulações envolvendo tortas de chantilly, jogos injustos, e expressões atônitas - atribulações que deixaram muitos detritos, de fato). Talvez eu esteja crescendo mais uma vez - "só para os lados, né, ô gordo!" -, talvez esse ano marque o fim de uma provação catastrófica que formou 90% do que me faz, bem, eu.
Mas eu me sinto bem, e eu acho que é isso a música quer dizer, não é?
"Sapphire and faded jeans
I hope you get your dreams
You go ahead let your hair down"
Pois bem, srª Rae, vou desamarrar meu cabelo curto (curtíssimo, mas nem tão curto assim) e deixá-lo cair sobre...
Ok, meu cabelo não cai, não sobe, não vai para os lados, mas, quem se importa? É só uma metáfora :)












"Oh, you're gonna find yourself somewhere...Somehow"

sábado, 5 de novembro de 2011

"Independentemente do que diga o seu confiável Timex" - Parte Três

Ela fitou o velho nos olhos, enquanto o mesmo mexia-se na poltrona com um chiado cansado, espalhando no ar o odor da idade, talvez até mesmo o da morte.
Estava perto, ela sentia. Estava perto, mas estava tão longe que nem ela mesma sabia aonde ela estava. Era como alguém que saía no meio de uma nevasca e perdia a guia. Olharia para os lados e a faixa vermelha de segurança estaria invisível. Olharia para trás, e o lugar daonde viera não passaria de uma fantasma na neve, igualmente submerso. Olharia para frente, e na frente só haveria o que havia aos lados e atrás: neve.
Lentamente, então, morreria sozinho no meio da nevasca.
Na sua cabeça veio um pensamento completamente fora de hora, mas igualmente feliz.
Talvez seja só um fantasma, afinal de contas, pensou, desesperada, e fantasmas não contam histórias. Parou e pensou melhor. Fantasmas... Sim, estes contariam as melhores histórias. Perdidas em meio às mortas bocas que já as sussurraram, apagadas em livros, cartas, textos, poemas, cadernos e diários de loucos.
Sim, os fantasmas lhe contariam as melhores histórias.
Mas ela queria ouvir? Alguém queria ouvir?
Os fantasmas jazeriam, então, cada qual com sua história morta, esperando sua vez de ser ouvido, e, mesmo que por uma última vez, atormentar aquele que ouve.
"Charlie, querida", disse o velho com a voz rasgada, como a de alguém que fumou a vida toda, "Charlie era a pessoa mais amável do mundo! Ela era daquelas que resgatam animais nas ruas, dão-nos toda a boa-vida que eles nunca tiveram, e os amava como nunca amou ninguém.
"Ora, eu nem sei se ela me amava mesmo, ou se ela só me tolerava".
Ele tosse um pouco, e se ajeita na velha poltrona, mais uma vez acendendo o odor levemente peculiar que exalava do seu corpo.
"Naquele verão, quando Joy Spring explodia nas rádios, e Clifford Brown fazia-nos sentir nas nuvens, havíamos comprado um casa só para nós - e nosso filho, Cole". Ao ouvir o nome do filho do velho, seus olhos perscrutaram as plateleiras, em busca de uma foto dele, e - a-há! -, lá estava, a imagem de um garoto espinhento, louro, um tanto baixo para a idade (uns dezessete, talvez). Ao lado da foto, havia outro, presumivelmente da mesma pessoa, mais adulta, talvez formando-se na faculdade.
O que era mesmo?
Medicina, pensou. Não sabia como ela sabia, ela só sabia.
A neve começou a cair do lado de fora, o que a fez lembrar-se do seu diálogo interior de antes, mas dessa vez ela se perguntava se ficar dentro daquele casarão seria realmente mais seguro do que arriscar-se do lado de fora, no escuro e na neve. Mas, antes que ela pudesse se fazer valer desses pensamentos, o velho recomeçou o seu contar de histórias.
"A casa não era muita coisa, isso eu posso dizer.
"Os tempos da guerra fria eram outros. Não eram de longe tão ruins quanto os da segunda guerra, mas não eram tão prósperos assim para o cidadão comum, que a gente vê nas ruas todo dia.
"Foi melhor para as grandes corporações, e para quem investia dinheiro, mas, você sabe, não? Fazia pouco tempo havíamos enfrentado as duas maiores guerras da história num sanduíche com recheio de crise, então perdoe-me por não ter estado tão confiante assim no nosso país.
"E, é claro, havia a ameaça de invasão dos sovietes. Mais tarde chegaríamos ao ponto de acusar nossos próprios vizinhos de serem comunistas por fazerem caridade!
"De qualquer forma, o verão de 54 ficou marcado no meu coração assim como no meu corpo.
"A casa - agora eu percebi que divaguei demais, querida, e peço desculpas - era aqui mesmo, mas não era essa. Na verdade a casa não era completamente nossa; nós só tínhamos pagado a primeira prestação, mas, bem, era uma casa, e era nossa, independentemente do que dissessem os papéis.
"Chegamos lá cerca de um mês antes de tudo acontecer, e, por Deus!, ela era linda. Nosso filho, ainda um bebê, tinha seu próprio quartinho que não era uma extensão do nosso, nossa cozinha era um cômodo definitivamente diferente da sala de jantar, que por sua vez também estava separado por pelo menos uma parede da sala de estar.
"Sim, era uma casa de sonhos - sonhos bem medíocres, mas pelo menos eram sonhos, e estavam realizados. Por ora".
Charlotte sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha, e um nódulo formar-se na garganta.
Sim, ela também lera nos jornais, e havia sido uma catástrofe.
O final do verão de 54 realmente tinha ficado para a história.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Dead Men Tell No Tales

Dead Hearts Tell No Lies
only frightening truths
and shattered dreams
Dead Souls Tell No Stories
only shrieks and moans
of its past lives
Dead Trees Tell No Wishes
only broken promises
and tearful good-byes
Dead Houses Tell No Memories
only crimson stains
in a dark living room
Dead Messiahs Tell No Miracles
only treacherous comrades
and madder grins
Dead Writers, However,
can make you smile
and make you cry
no matter if
they're still alive

domingo, 16 de outubro de 2011

Alice

No espelho do lago ela vê a face da dor.
No espelho do lago ela vê
No espelho do lago ela vê
Um futuro sombrio. No espelho do lago, no espelho do lado.
Uma sombra inefável, de um mistério abandonado - ou será
Que ele simplesmente jamais fora pertubado
por puro bom senso
de mil exploradores
mortos e enterrados?
No lago uma casa do espelho, que é e não é
Pois senão que a vida que corre em suas veias mal é e não é
Pensa e não pensa, quer e não quer
Pois que ela morre e não morre
Como gato
No espelho do lago ela vê uma sombra profunda
Uma sombra em plena penumbra, um eclipse
Uma lágrima fora de hora
Uma página fora de forma
Uma nuvem em forma de faca
Fadiga, faminta, feeling, fée fait une fournaise de feu
No espelho do lago ela vê маяк света 
E o próprio rosto, que brilha como a lua ensandecida
Cai num rêve e esquece de tudo aquilo
E quem dirá
que ela não sonhava
desde o princípio?

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

O Vento que vem do Norte

O apartamento é tão vazio.
Mas o mundo continuou girando eternamente, as pessoas continuaram girando internamente, a cada um o ostracismo que lhe cabe.
Bem, eu não estou pronto para girar, eu quero parar, sentir meu sangue saindo das pontas dos dedos, sentir o ébrio desequilíbrio que me traz.
Eu não quero esse ostracismo de que me incumbiram, não quero vestir essa farda.
Eu só quero parar.
Eu não quero morrer - pelo menos não até agora -, só quero parar por fôlego, e prometo que volto à tona. Prometo.
Eu só... Eu não consigo... Não consigo ver! Não consigo ver essa merda de mundo continuar a girar!
Então é isso, não é? "No final das contas somos todos sobreviventes de nós mesmos".
Todos os dias o sol bate no meu rosto, à caminho do trabalho, e eu tento sentí-lo vibrar em sua majestade, mas só o que alcança o meu rosto é o fedor pútrido do vento que vem do norte. E frio.
O frio é a pior parte.
Às vezes eu me pego no meio da madrugada sem sentir meus dedos. Às vezes eu tento me mexer mas não consigo! Não consigo! É como se eu de repente não me pudesse controlar... e vem tantos barulhos horríveis de noite. Sons do inferno, vozes atormentadas, almas retorcidas.
Aí passa.
Eu me mexo de novo, e fico feliz por isso.
A felicidade, porém, é tão fugaz quanto o vento que vem do norte.


- - - - - -


Outra madrugada, e eu contemplo a fotografia de nós três, tolos felizes que éramos.
Eu, à direita, com uma expressão que dizia "estou fazendo cara feia, mas é só brincadeira, campeão!", Neto, nosso filho, que só se chamava "Neto", apesar de não ser nomeado em função de nenhum avô, com um sorrisão-ão-ão, como ele gostava de dizer, no auge dos seus cinco anos. Clarice, oh, Clarice.
Clarice e seus cabelos cor de mel e noz moscada. Não tinha o sorriso mais bonito de todos, mas certamente tinha os olhos mais lindos que eu já vi.
Apaixonei-me por olhos âmbar, que mudavam de cor sob luzes diferentes. Uma espécie reflexo da sua própria existência tão fluida quando possível, de languidez tão... Tão... lânguida. Foge às minhas habilidades descrevê-la, e isso me dói mais que acordar de um sonho em que ela ainda está viva e perceber dela não restaram nem as cinzas, somente um túmulo vazio no meio de tantos outros.
Eu só queria ter algo mais que aquela foto para lembrar-me deles. Aquela foto é antiga, e é tudo o que eu tenho. Tudo que sobreviveu ao incêndio.


- - - - - -


Hoje foi outro dia normal.
Se é que "normal" ainda pode definir a minha vida.
Certamente que não.
Hoje eu entrei no carro sem olhar para os lados, mas o vento que vem do norte me surpreende mais uma vez com seu odor cremoso, quase como se estivesse fazendo o seu melhor para me convidar até lá.
Eu me pergunto se devo ir até lá. Também me pergunto se alguém mais sente esse cheiro.
Eu olho para as pessoas na rua, ainda girando e jogando seus ostracismos até mim, e percebo que não, decididamente não.
A ideia de visitar o lugar acalenta minha mente de novo, e eu sou atingido em cheio por memórias daquele dia.
Eu receberia o aviso ainda no hospital, e correria até o carro e arrancaria do estacionamento com tudo.
Ficaria preso no engarrafamento.
Chegaria tarde demais.
Os bombeiros diriam que tinha sido um vazamento de gás que ninguém tinha notado até Clarice querer fazer um café no fogão.
Eles também diriam que o fogo se espalhou muito rápido para que alguém pudesse fazer algo. Diriam que o meu filho ficou preso no andar de cima sem ter lugar para onde ir, até morrer sufocado na fumaça e no calor.
Que Clarice queimou até a morte ainda na cozinha, provavelmente correndo e espalhando mais fogo pela casa.
Clarice queimando, seus cabelos cor de mel e noz moscada se desfazendo num pequeno tufo crespo.
Seus lindos olhos âmbar morrendo, derretendo.
Deles não resta mais nada, só dois buracos negros cadavéricos.
Eu chegaria tarde demais, e veria minha casa queimar como uma fogueira de São João, e assistiria às casas vizinhas impassíveis, e à multidão se formando. Ouviria que, foi mal, doutor, mas você não pode entrar lá. Foi mal, doutor.
E eu tentaria gritar com tudo o que tinha nos pulmões, gritar até tossir sangue, mas eu me encontraria sem voz alguma.
Eu me ajoelharia, impotente.
Porque eu havia chegado tarde demais.


- - - - - -


Estou chorando como uma criança agora. As memórias estão me atacando como nunca, e o vento que vem do norte tomou conta da minha casa como se sabendo da minha fraqueza.
Eu desisto de vez.
Eu olho para a pistola na minha mão, mas eu sei que não vou atirar.
Porque o vento que vem do norte continua aqui, e ele quer algo de mim.
Eu me levanto e pego as chaves do carro, e dirijo até o local que jurei jamais voltar.


- - - - - -


O homem segue o caminho até o local do incêndio.
Já faz dois meses, mas as faixas amarelas ainda proíbem a entrada na pilha de cinzas onde ele costumava viver.
O vento que vem do norte é mais forte ali. Ele sabe que é tolice chamar aquilo de norte sem nem mesmo saber se é norte, mas chama mesmo assim.
Ele estaciona e desce do carro, o cheiro ficando mais distinto a cada passo.
Não era um odor de morte que vinha dali.
Eram cinzas, mel e noz moscada.
Ele age como se soubesse exatamente o que está fazendo, mesmo sem fazer ideia daquilo.
Passa por debaixo da faixa e começa chapinhar em meio às poucas cinzas que restam.
De repente, ele realmente sabe o que está fazendo.
Ele anda até o fundo do lote e se joga no chão, escavando fundo nas cinzas, e lá está a caixa.
Ele a abre e a encontra cheia de fotos deles, antigas e recentes.
Ele não sabe porque elas estão ali, ou o que explicaria o fato de ele saber onde elas estavam.
Ele só está tão feliz. Tão, tão, tão feliz, que começa a chorar ali mesmo, olhando para as fotos.
E grita, grita um grito desesperado de felicidade e insanidade, entre lágrimas nas cinzas.
Ele grita, enquanto amanhece.
E o sol brilha. E ele sente paz.
Sente calor.

domingo, 2 de outubro de 2011

A Casa na Beira do Rio - Parte 1

Meu avô costumava me contar histórias da sua infância.
Eu ficava fascinado com aqueles causos infantis, de pães roubados, brigas escolares, verdadeiras Helenas de Tróia que provocavam celeumas de proporções épicas.
Todas as histórias que ele me contou - hoje eu sei que elas eram todas verdade - começavam do mesmo jeito: Carlos Roberto saía de casa com um olhar matreiro de quem procura confusão, encarando a rua norte de Tupiniquim-maior, uma cidadezinha pequena no interior de Minas. Rua esta perto da Igreja, que também funcionava como escola nos fundos.
Segundo ele, era uma boa vida, mas eu tenho minhas dúvidas.
Ele tinha muitos amigos em Tupiniquim-maior, mas, em julho de 1945, dizia, teve de se mudar para a capital, indo morar com os avós, por causa dos estudos. Nunca me explicara direito o porquê da mudança - dizia que os pais dele queriam que ele tivesse uma vida melhor, coisa que uma igreja-escola de interior jamais poderia oferecer.
De causo em causo, meu avô jamais se esquecia dos detalhes, mesmo tendo Alzheimer, o que é normal, segundo os médicos. Aparentemente, os idosos têm mais facilidade de recordar esse tipo de memória porque está numa área não-afetada pela doença, por serem memórias de longo prazo. Mas eu sei a verdadeira razão de ele jamais ter esquecido do que acontecera em Tupiniquim-maior.
Oh, Deus, eu estou segurando ela agora mesmo.

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Tudo o que eu vou narrar aqui aconteceu anos atrás, em maio do ano de 1945, e só chegou até mim ontem à noite, pela boca do meu próprio avô, no seu leito de morte.
Eu fui chamado no celular pelo Dr. Oliveira ontem à noite. "Melhor você vir logo", disse-me, "Seu Carlos não vai aguentar muito tempo aqui, esperamos o óbito para essa madrugada ainda". Isso não me chocou, por incrível que pareça. Nós já esperávamos que ele fosse partir logo, e ele também já dava sinais de já querer ir também. Mamãe não queria ver aquilo, e foi para um retiro semana passada, para tentar lidar com a perda do pai.
Não tem sido fácil para ela. Desde que papai morreu, ela não foi mais a mesma - caramba! Ela nem dirigia mais! -, sempre andando de um lado para o outro, murmurando e resmungando.
Não vou mentir e dizer que não me sinto mal. Se aquele bêbado não tivesse entrado na contra-mão com tanta rapidez, se papai não estivesse voltando do supermercado, se... Bem, tem muitos se's nessa história. Abelardo Nogueira morreu voltando das compras, provavelmente ainda pensando no jantar, e minha mãe simplesmente não conseguia aceitar aquilo, mesmo já fazendo oito meses desde que ele morreu.
Nem eu, eu acho.
Agora que eu penso, ele morreu numa quarta-feira, assim como meu avô.
Quais são as chances?


- - - - - -


Como eu não tenho nenhum irmão ou tio, e minha avó Júlia já partiu para o outro lado em dezembro de 2000 - mas já estávamos esperando essa, também; ela vinha lutando contra o câncer havia três anos -, a morte do meu avô foi bastante solitária. Só eu, ele, e um monte de aparelhos que tentavam mantê-lo vivo só por tempo suficiente para que eu pudesse dizer adeus. Porém eu acho que o que tem nessa caixa que agora seguro é o que o manteve vivo esse tempo todo, uma história só esperando para ser contada. Ele viveu uns bons oitenta anos, uma vida culminando naquele momento, naquele quarto hospitalar, naquela cama.
A priori, eu não achei que ele fosse falar - acho que nem os médicos esperavam isso -, e ele realmente passou alguns minutos dormindo, antes de abrir os olhos e me ver.
Eu esperava chorar naquela hora, mas vê-lo tão pequeno, tão velho, tão frágil, naquela cama realmente me tocou no fundo.
Ele tirou o aparelho respirador, claramente capaz de fazer aquilo sozinho, pelo menos por enquanto.
"Onde está", disse, pausando para respirar, "sua mãe? Cadê Ana?".
"Bem, vô, o senhor sabe como ela está. Ela não quer ver ninguém, foi para um retiro", respondo, coçando a cabeça um pouco, como quem sabe que está dando uma desculpa esfarrapada.
Ele se ajeita na cama e encara o teto, "Bem, eu acho que devia ser assim mesmo, Davi". Ele tem um ar de quem finalmente compreende as coisas, e as aceita bem como elas são.
"Você realmente foi o único que sempre gostou de ouvir minhas histórias, não é mesmo? Acho que já estava escrito para ser assim". Eu o pergunto por que ele fala daquele jeito, mas ele simplesmente balança uma mão no ar e diz: "Talvez exista um Deus por aí - não aquele para quem a gente costuma rezar, mas um completamente diferente. E talvez esse Deus seja sádico.
"Cheguei a um ponto da minha vida, filho, em que essa opção parece ser a mais correta. Afinal de contas, que tipo de Deus faria isso com uma pessoa?".
"Morrer nunca foi fácil, vovô, eu não acho que seja legal você ficar falando esse tipo de coisa tão perto de vê-lo pessoalmente", digo, um pouco irritado.
"Morrer?", ele diz, num tom de risada sarcástica, "Filho, morrer é tudo o que eu quero nesse momento. Caramba, eu vivi a minha vida esperando o momento em que eu simplesmente fosse morrer!".
"Quer dizer que o senhor não gostava da gente, se arrepende de ter vivido o suficiente para ver sua filha crescer, para me ver crescer?", agora eu estava irritado mesmo. Por que ele diria aquilo?
"Não, não, Davi, vocês nunca foram o problema.  Sempre existiram outras coisas... Coisas ruins".
Eu não respondo, mas continuo encarando-o.
"Lembra das minhas histórias? Lembra de como eu me mudei por causa dos meus pais, em julho de 45?"
Eu digo que sim, mas não acrescento que eu acho que meu avô havia finalmente perdido toda a sanidade tão perto de morrer.
"Não foi bem assim.
"Meus pais nunca quiseram que eu me mudasse de Tupiniquim-maior. Foi eu quem insistiu para mudar de cidade. Por fim, eu os venci pelo cansaço, afirmando que eu queria ter oportunidades melhores na capital. Eles me perguntavam se eu não sentiria falta dos meus amigos, ou deles. Eu dizia que sentiria para sempre falta deles, dos meus pais, mas que poderia arranjar amigos novos na capital.
"Dito e feito, depois de dois meses de insistência, meus pais aproveitaram o fim do semestre para me matricular numa escola de Belo Horizonte".
"Mas, por que você faria isso, vovô, você não gostava dos seus amigos?", perguntei.
"Gostava sim, Davi, mas aconteceu algo terrível entre nós, algo que eu nunca contei para ninguém, nem para Júlia, que eu só conheci anos depois em BH.
"Eu levei dois meses para convencer meus pais a me mudarem de cidade, então os acontecimentos que eu vou narrar agora aconteceram em maio daquele ano. Preste atenção".
E eu prestei.
E ouvi cada palavra que saía da sua boca, mesmo quando eu queria gritar para ele parar, mesmo quando desejava jamais ter atendido o Dr. Oliveira.
Eu ouvi cada palavra em silêncio, enquanto uma sombra pousava naquele quarto de hospital.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Acho que minha imaginação morreu - ou está em algum estado de coma =[

Aqui estou eu, sentado na frente do computador, sem saber sobre o que escrever.
Comecei dois contos que eu provavelmente jamais vou terminar.
Não vou contar sobre eles aqui (eu tinha escrito um parágrafo sobre os dois, mas eu apaguei), principalmente por causa da chance - mínima, porém uma chance - da minha imaginação dar um jeito de continuá-las.
Por ora, eu deixo vocês, leitores de cuja existência eu duvido, com esse pequeno texto, qu nem crônica é.
Aliás, sobre o que é esse texto?
Será que é um daqueles Morning Gazettes que eu prometi escrever?(Desisti deles por pura preguiça)
Talvez seja.
Afinal de contas, porque raios você ainda está lendo?
O que há de tão interessante nesse texto que te atrai a atenção?
Enfim, o que eu quero dizer é que a mim crônicas não-narrativas sobre o que penso têm vindo com muito mais facilidade do que contos em si.
Eu ia dizendo que a gente se acostuma a escrever histórias curtas, contos em suma, e que perdemos o jeito se não o fizermos, e tal, mas isso é óbvio demais.
Minha cabeça deve estar cheia de coisas mais importantes agora, é isso.
Hoje eu fui à oficina de redação e nem escrevi nada lá, e olha que o tem nem chato era. Era sobre o trânsito.
Em suma, estou meio deprê.
Yuri, um amigo meu, estava me falando algo sobre estar meio para baixo também.
Sobre não suprir as expectativas.
Bem, eu tenho esse sentimento constante em mim. Quer dizer, eu vivo corrigindo meu próprio português, eu sinto um inveja branda de quem pode se relacionar bem melhor do que eu, acho-me feio, chato, e, às vezes, duro demais nos meus julgamentos.
Nossa, resumir-se em um parágrafo dói.
E esses são só os mais superficiais; eu tenho defeitos bem mais profundos que esses.
Às vezes seria mais fácil poder tirar umas férias de mim mesmo, sabem?
Se seu corpo fosse uma nave, um carro, ou algo do tipo, você seria o piloto: bastaria colocar no piloto automático e ir dormir.
Mas a vida não nos dá essa folga.
A vida é uma vadia maluca em eterna tpm.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

E uma terça também...

Sabem de uma coisa? Esse mundo às vezes me enoja.
Mas às vezes eu me sinto tão parte dele quanto qualquer outro.
Já tiveram a experiência de andar pelas ruas sem notar o chão, como fazemos todo dia?
Já pararam para olhar em volta? Nos carros?
As pessoas brigando entre si em altos volumes simplesmente por estarem no carro - e, por estarem no carro, elas acham que ninguém ouve.
Vocês já viram aquele cara que pede dinheiro no sinal numa muleta ir andando numa boa depois?
Já ouviram um aleatório tocando a 9ª de Beethoven no violino na calçada?(Eu já, em São Paulo, e até dei um trocado para ele.)
Conseguiram enxergar uma família vivendo debaixo de um outdoor?
Um mendigo chorando?
Eu também não.
A maior parte dessas coisas eu nunca fiz.
Talvez eu estivesse esperando uma epifania sociológica, um súbito emergir de ideias! Ou talvez eu estivesse vivendo na mesma realidade cinza que nós todos temos o prazer de chamar de "mundo".
"Mundo", não "Terra".
Mas será que vale a pena mudar? Por tanta dor e desesperança?
Não me leve a mal: não sou um daqueles moralistas idiotas que acham que o problema é o capitalismo e os Estados Unidos malvados da América.
Sou só um realista.
E que se importa com o que realistas pensam, quando há tantas mentiras das quais não conseguimos nos livrar por aí?
"A vida importa", "uma pequena ação muda tudo", "somos todos iguais", "somos todos capazes", "somos todos felizes", "somos todos irmãos".
Quem se importa?

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Era uma vez

Era uma vez uma mente
e ela se perdia no espaço
Era uma vez um corpo
e dele não partia nada
e nele não entrava nada
Era uma vez um ser
e ele era todo ser
e ele não era ninguém
Era uma vez um nome
e nele não se lia nada
e ele não dizia nada
Era uma vez uma vida
e ela morria no nada
ela morria no nada
Era uma vez uma estrada
e ninguém sabia
se ia ou vinha
Era uma vez uma foto
e ela nada revelava
e ela nada relevava
e ela nada significava
Era uma vez um livro
e era um livro?
e era um livro?
Era uma vez dois olhos
e eles viam tudo
sem enxergar nada
do seu ponto no universo
daonde tudo e nada
tudo e nada
eram um só
um só
Era uma vez
um tudo
Era uma vez
um nada

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Sobre a vida, a morte, e a religião

A vida é uma corrida contra a morte.
É uma corrida eterna, que começa antes mesmo do nascimento - já que podemos morrer ainda no útero de nossas mães. Às vezes nós relaxamos e ela encosta na gente, nos faz sentir a majestosa dor de sua foice pontiaguda. Às vezes nós tropeçamos e ela nos alcança. Pode ter sido uma besteira, um sacríficio, ou uma idiotice. Não importa o quê, ela nunca falha em nos alcançar. Exceto, é claro, nas vezes em que ela não consegue, por estarmos muito na frente, ou por ela estar ocupada demais.
Mas tem gente que confunde isso com bondade divina.
Eu não. Eu penso que esses momentos são puros descuidos-não-tão-divinos assim.
Deus estava muito ocupado dando AIDS para um bebê africano, câncer para pais de família, deixando uma criança ser abusada e prostituída, ou meramente não dando a mínima para nós aqui embaixo, ou sejá lá o que se enquadre no quadro de passatempos dos céus.
Às vezes, ficamos velhos e/ou cansados demais para correr - aviso aos gordinhos como eu - e ela simplesmente chega até nós - e é bom que saibamos o que estamos deixando para trás.
É por esse tipo de coisa que às vezes eu me pergunto sobre o - AVISO: clichê chegando - sentido da vida. A maioria das pessoas nasce, vive, morre, e é esquecida, e é ser esquecido é que realmente matar alguém.
Mas será que não existe alguém por ai, com um pequeno templo para aquele soldado que morreu há tantos anos, na primeira guerra? Será que não existe algum coração eternamente partido pela morte do amado? Nenhum marido fiel enlutado para sempre, de alma ferida pela perda da cobiçada "outra metade"?
E, quando eles forem embora para o grande plano do vazio, alguém vai chorar por eles como eles choravam por outros? Alguém por acaso vai substituí-los no seu luto, e chorar pelos mortos dos outros?
Eu não sei dizer. Eu realmente não sei dizer.
Essas perguntas são o maior motivo para a existência da religião. Essa vã esperança humana de ter, afinal, valido a pena todo o esforço na vida.
"Mas existe o céu dos animais?", pergunta a criança aos pais, olhando para o cachorrinho velho e doente.
"Claro que sim", respondem. Mas eles acreditam nisso? O que nos torna diferentes dos outros animais? Inteligência, DNA, tamanho, raciocínio lógico, fala? Ou somos escolhidos por Deus para sermos assim e pronto?
Você pode ensinar sua religião para uma criança, mas, para ela, Deus vai continuar sendo os pais dela. E um cachorro? Será que ele tem alma, essência? Para um cachorro, Deus é o dono, que provém comida, carinho e abrigo.
E nós por acaso podemos cumprir a tarefa herculeana que é ser responsável por outro ser? Nem sempre.
Nem sempre.

sábado, 17 de setembro de 2011

Space-dye Vest

Essa é a letra de uma das músicas mais bonitas que eu conheço.
Talvez não seja a com melhor ritmo, talvez nem seja a melhor cantada, mas, caramba, essa letra é linda.
Ela foi toda escrita por Kevin Moore, ex-tecladista do Dream Theater.

"Ela foi inspirada por... eu estava folheando um catálogo de moda e vi uma foto de uma modelo com uma peça de roupa chamada 'space-dye vest'. Então, eu me apaixonei pela modelo [risos] e durante aquele minuto eu fiquei obsessivo por ela, e pensei 'por que estou fazendo isso?', e percebi que vinha fazendo isso frequentemente nos últimos tempos. E eu acho que a principal razão pela qual eu vinha fazendo isso é que, isso eu percebi na época, eu vinha de um relacionamento onde eu havia sido maltratado, basicamente, e a situação é que eu ainda não tinha dado tudo que tinha pra dar, então eu estava jogando tudo pra todos os lados, apontando em todas as direções. Foi um caso total de projeção. E esta música é justamente uma tentativa de admitir que eu estou meio perdido. Então é uma música meio sombria. Foi muito catársico."

A banda nunca tocou Space-dye Vest ao vivo em respeito a ele, por considerá-la "a música do Kevin"
Abaixo, eu posto a letra dessa música, uma música que, na minha opinião é o verdadeiro grito dos corações desesperados.

Falling through pages of Martens on angels
Feeling my heart pull west
I saw the future dressed as a stranger
love in a space-dye vest

Love is an act of blood and I'm bleeding
a pool in the shape of a heart
Beauty projection in the reflection
Always the worst way to start


[Barulho de TV,  partes de filmes e novelas]


[Sample is Julian Sands from the film "A Room With A View".]
"But he's the sort who can't know
anyone intimately, least of all a
woman. He doesn't know what a woman
is. He wants you for a possession,
something to look at like a painting or an ivory box.
Something to own and to display. He doesn't want you to be real,
or to think or to live. He doesn't love you, but I love you.
I want you to have your own thoughts and ideas and
feelings, even when
I hold you in my arms. It's our last chance... It's our
last chance..."



Now that you're gone I'm trying to take it
Learning to swallow the rage
Found a new girl I think we can make it
as long as she stays on the page

This is not how I want it to end
And I'll never be open again

[Sample from "The Trouble With Evan", from the Canadian series "The Fifth Estate".]
"...I was gonna move out...ummm...get,
get a job, get my own place, ummm,
but... I go into the mall where I
want to work and they tell me, I'm,
I was too young..."

[Sample is Jim Hill from a news commentary about the OJ Simpson freeway chase.]
"Some people, gave advice before,
about facing the facts, about
facing reality. And this is, this
without a doubt, is his biggest
challenge ever. He's going to have to face it.
You're gonna have to try, he's gonna to have to try and,
uh, and, and, and get some help here. I mean no one can
say they know how he feels."

[Sample from the Conan O'Brien show.]
"That, so they say that, in ya know
like, Houston or something, you'd
say it's a hundred and eighty degrees,
but it's a dry heat.
In Houston they say that?
Oh, maybe not. I'm all mixed up.
Dry until they hit the swimming pool."

[Sample from "The Trouble With Evan", from the Canadian series "The Fifth Estate".]
"...I get up with the sun... Listen.
You have your own room to sleep in,
I don't care what you do. I don't
care when. That door gets locked,
that door gets locked at night by nine o'clock.
If you're not in this house by nine o'clock, then you'd
better find some
place to sleep. Because you're not going to be a bum in
this house.
Supper is ready..."
[estática]

There's no one to take my blame
if they wanted to
There's nothing to keep me sane
and it's all the same to you
There's nowhere to set my aim
so I'm everywhere
Never come near me again
do you really think I need you

I'll never be open again, I could never be open again.
I'll never be open again, I could never be open again.

And I'll smile and I'll learn to pretend
And I'll never be open again
And I'll have no more dreams to defend
And I'll never be open again

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Titleless Cry

It's something one can really only laugh at.
Today, and today only - but I've been having a lot of "todays" lately - , I'm feeling so lonely that I could - oh, so lonely - hug a total stranger and beg for their mercy.
Maybe, I think, I'm just a worthless little crybaby.
Or maybe I'm right.
Maybe I should give up on it already - worthless little crybaby.
Teel me to fuck off, I beg you.
Tell me to man up and go fuck myself.
Forget about me.
In fact, I might have already been forgotten - partially.
In few weeks - little more than a month - , I will have never been here at all.
Let me vanish.
Ash to ash, I'm fucked.
Fuck idiot me. Fuck you.
Let us disappear on that god-forsaken hell-hole we call world.
Oops!
I'm all alone now.
Who's gone?
Me, or all the others?
But I don't have you;
I don't have you.
 
                          o
                          o
                          o

And this shall be
                      
                         my great demise.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

"Independentemente do que diga o seu confiável Timex" - Parte Dois

A lua acima, tão branca e inefável quanto o vento e o escuro céu, encarava a mulher na calçada com a mesma alva indiferença com que olharia qualquer outro.
Mas ela não era qualquer outra.
Era Charlotte.
E tinha algo para fazer. 
Nas suas negras vestes, ela começa a andar, furtiva, aproximando-se mais e mais da casa apontada pelo motorista, calmamente tirando da cabeça todo tipo de pensamento sobre a coisa na ambulância, pondo o objetivo no topo de suas prioridades.
A casa na verdade é um casarão colonial, algo cuja construção datava de pelo menos um século.
Tão antigos quanto o próprio lugar, eram os demônios vivendo ali.
Ou talvez nem fossem demônios.
Talvez nem fossem mais que um.
Talvez só fosse humano. Tão humano quanto qualquer outro.
Ela avançou pela calçada até a porta, numa ladeira inclinada, ainda agindo como uma sombra, olhando para trás em busca de algum perseguidor.
No fundo de sua mente, uma vozinha alertava, gritando que aquilo era errado, que ela deveria fugir, que o que habitava entre aquelas paredes era pior do que qualquer coisa que poderia sair atrás dela, qualquer coisa jamais vista nos seus pesadelos mais alucinantes, qualquer...
A porta da casa se abriu, e o interior dela era fracamente iluminado por um candelabro de parede, dando um ar ruim de mistério - o que havia naquela


(ambulância - no fundo da ambulância)

sombra marcada pelas estantes? Eram
 
(olhos)

objetos não vistos, vasos, plantas, livros incrivelmente velhos. Charlotte-menina tremeu e se escondeu em algum ponto da mente da Charlotte-adulta. Sozinha, ela respirou fundo, adentrando à casa.
O foyer era simples, pequeno, com três portas e um portal que aparentemente dava para a sala de estar; uma escada de destino obscuro, um lustre de velas apagado, deixando a sala iluminada somente pelos dois candelabros que ali estavam.
Ela fechou a porta e começou a andar silenciosamente, passando pelo portal para a sala de estar, fechando o portal de duas portas delicadamente no caminho, dando de encontro com uma sala iluminada somente por uma lareira acesa, com muitos livros nas estantes, algumas plantas, uma mesa com três cadeiras em volta.
À frente da lareira, uma poltrona e um sofá.
Na poltrona, um velho a esperava fumando bem devagar um charuto, esperando por ela.
"Sente-se, minha criança", ele diz, e ela se senta obedientemente no sofá, olhando para o rosto dele bastante confusa. Aquele velho não era nem um pouco o que ela esperava encontrar - o que lhe foi dito que ia encontrar. Ela sentiu o papel no bolso da calça - e agora?.
"Você está aqui por uma história, não é?", continuou, mas ela não sabia se queria ou não ouvir o que o homem tinha para falar. "Pois bem, vou contar a minha história - a única história que eu conheço, a única que importa.
"Foi há tanto tempo atrás que às vezes eu nem sei se aconteceu de verdade, ou se eu sonhei tudo isso. Nesses dias, basta que eu me olhe no espelho, para que eu lembre que sim, aconteceu". Charlotte notou então que o homem tinha várias marcas de queimaduras no rosto e nas mãos, como se tivesse sobrevivido a algum incêndio horrível no passado.
"Foi o verão 1954, sessenta anos atrás, não é?
"O verão de 54 ia com tudo - a música que tocava nas rádios era o bom e velho Clifford Brown, Joy Spring, eu me lembro bem. Depois da segunda guerra, as pessoas queriam mais diversão, esquecer aqueles dias negros e tristes da história do mundo, mas ficava difícil relaxar com o perigo constante de uma invasão comunista, sabe?
"Clifford Brown - você já ouviu aquele homem errar uma nota? Pois eu lembro bem como se fosse ontem, nós tínhamos ido ao show dele, e tinha sido ótimo.
"Por 'nós' eu digo, claro, eu e minha mulher.
"Doce, doce, Charlie".
Nesse momento, Charlotte se endireitou no sofá, sentindo um calafrio percorrer o corpo todo, apesar de eles estarem sentados bem em frente à lareira.
"Doce, doce, Charlie".

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

I'm still alive, my little druz'ya :)

É isso que eu gostaria de dizer a todos os meus leitores.
"Ainda estou vivo", um tapa na cara de quem desejava pelo contrário u.ú
Recentemente, minha vida tem estado muito bem obrigado.
Não sei por que, mas eu venho me sentindo mais "de boa", na falta de expressão melhor.
Resolvi ver o mundo de um jeito menos ressentido.

"Gather ye rosebuds while ye may.
Old time's still a-flying,
And this same flower that smiles to-day
to-morrow will be dying

[...]

Then be not coy, but use your time,
And while ye may, go marry:
For having lost but once your prime,
You may for ever tarry. 
"
"To the Virgins, to Make Much of Time", Robert Herrick

E ainda tem uma pintura para ilustrar, de nome "Gather ye rosebuds while ye may", Whitehouse





E é com essa mensagem que eu deixo vocês para enfrentar mais uma semana, brava e heroicamente, ó ser gauche na vida.

P.S.: Feriado vindo, vou postar a continuação de "Independentemente do que diga o seu confiável Timex" :)
E mais um mini-conto - ou quem sabe acabe nem sendo tão mini assim, nakonets.

TALVEZ

Do zvidaniya para vocês, dobryi dyen, e farewell.

P.S.2: Sim, estou treinando meu russo u.ú
P.S.3: Falando em russo, descobri uma banda russa super-legal - que canta em inglês -, chama-se Mechanical Poet, ouçam ai, depois, quando tiverem tempo

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

O Porto e a Luz da Lua

"Ok, o meu psicólogo me mandou fazer isso", disse ele, sentado num sofá de uma sala de estar bem iluminada, com o som das ondas quebrando na praia, segurando um gravador. "Tudo começou três anos atrás, quando eu e minha família - minha mulher e minha filha - viajamos até a essa casa portuária alugada, para passarmos um fim-de-semana sozinhos, sem a confusão da cidade", dizia.
"Nós nunca tínhamos tempo um para o outro - eu e meu trabalho nas relações públicas de uma empresa grande, Ana na faculdade. Cláudia no meio, pobrezinha - nós mal a víamos.
"Por isso, essa viagem de fim-de-semana, que nós programávamos há tanto tempo, era tão especial".
"Saímos no sábado bem no começo da tarde, Cláudia radiante com a viagem de ferry boat que faríamos, Ana, minha esposa, sentada ao meu lado, dormindo a viagem inteira.
"Éramos uma família... Feliz, e aquele fim-de-semana prometia-nos um bom descanso", um suspiro, não acreditando nas próprias palavras. Na sua cabeça, o psicólogo, para quem estava fazendo aquela fita, pedia a ele pela verdade, e só a verdade. Ninguém o julgaria mais.
Ele pensa, enquanto fala ao gravador, no quanto daquilo é verdade. Eram mesmo uma família meio desencontrada mas feliz? Não éramos um casal em decadência, um casal que jamais deveria ter sido. Um casal que teve uma filha para salvar um casamento em pedaços.
Ele tinha uma amante. Não era um emprego que levava a maior parte do tempo - era a vida dupla dele. Seu desejo interno de sair de casa e nunca voltar. E ela não sentia o mesmo?
Então porque ainda estavam juntos? Sua amante desejava ser a única dele, queria ver-se livre de Ana.
Mas havia Cláudia, oh, tão inocente, tão pura, presa com um casal de monstros que só lhe permitiram a existência por puro egoísmo. Medo. Comodismo. Não queriam encarar o fracasso de frente.
Depois do acontecido, ele nunca mais falou com a amante.
A culpa o corroia por dentro.
David, redento, agora sentava no mesmo sofá que sentara três anos antes, e chorava, com o gravador jogado num canto, ainda gravando, esperando que ele retomasse donde havia parado. Ele respira fundo, enxuga os olhos, firme e confiante. Olha o gravador jogado no canto, e decide continuar - não iria desistir ali, custasse o que custasse.
"Não... Não éramos felizes. Exceto por Cláudia - ela estava sempre sorrindo.
"Eu e Ana, nós... O amor já havia acabado. E todo dia somava-se a uma pilha de decepções", suspira, "Essa viagem era nosso ópio, nossa ilusão de que tudo estaria bem. Mas não estava".
"Mas, voltando ao carro, trouxemos, também, o Golden Retriever da minha filha, Thor, que estava balançando a cauda, contente da vida, com a cabeça do lado de fora do carro".
"Chegamos em pouco tempo - Cláudia logo se cansou da viagem no ferry, e foi dormir também com Thor aninhado no colo; eu fiquei dirigindo sozinho, aproveitando a calmaria".
Ele se ajeitou no sofá, sabendo bem demais que estava perto da parte mais difícil. "Vá com calma, David, vá com calma e não se preocupe com o tempo - apenas chegue lá", o psicólogo dizia, mas ele mesmo não estava seguro daquilo. Em tudo que olhava, só havia lembranças, em tudo que tocava, podia até sentir o calor delas lá, como se elas tivessem acabado de estar lá; em tudo que cheirava, vinha-lhe o perfume de Ana, o cheiro de criança de Cláudia, até mesmo o cheiro de Thor. Ele estava sozinho na casa portuária, sentado no sofá, divagando com o gravador ligado, gerando um silêncio de vários segundos na gravação. De repente voltou a si, prosseguindo com a gravação, afastando aqueles pensamentos da cabeça.
"Assim que chegamos, desfizemos as malas e fomos até a varanda, conversar. Cláudia e seu cachorro foram correr na praia, enquanto eu e Ana dividíamos uma boa margerita, só para passar o tempo. Naquele momento, tão simples, dividindo uma bebida com a minha mulher no fim da tarde, conversando. Será que eu ousei pensar que tudo se resolveria? Será que ela pensou assim?
"Eu penso, será que, à noite, faríamos amor como nunca havíamos feito antes, e, de manhã cedo, comeríamos o pão um do outro, sorrindo como dois adolescentes?
"Acho que eu cheguei a pensar tanta tolice. Mas, eu me pergunto, será que ela também pensou?".
Um vento frio veio da porta, anunciando a todos os moradores que a tarde estava no seu final, e que a noite seria gélida.
"Almoçamos o que havíamos trazido da cidade - hambúrgueres e refrigerante -, o que também constituiria o nosso jantar, apesar de Ana ter reclamado. 'Isso engorda muito! Vamos comer isso aí amanhã também?', ela disse, mas acabou comendo também.
"Infelizmente, não foi isso que almoçamos no dia seguinte".
Estava entardecendo, e David estava se cansando daquilo tudo, e a noite estava subindo por suas coxas, espreitando a chance de invadir de vez o seu espaço. Mas ele se lembrava das palavras do psicólogo, que dizia para ele ir em frente e não desistir sem ter coberto o máximo possível. Continuou:
"A noite caiu bem rápido, provavelmente porque estávamos nos divertindo bastante, então nós jantamos e nos reunimos na sala de estar, onde eu estou sentado agora. Cláudia se sentou no chão com Thor; eu e Ana ficamos neste mesmo sofá, abraçados.
"Minutos se passaram enquanto nós conversávamos - sobre tudo, sobre nada, jogar conversa fora -, e nós nem percebemos o tempo passar, rindo das brincadeiras da garota com o cachorro; eu provavelmente ainda estava pensando na nossa possível noite porvir".
Dessa vez ele desligou o gravador antes de voltar a falar.
Essa era realmente a parte difícil, a parte em que tudo foi ao Inferno, a parte que até hoje lhe assombrava os sonhos.
Tomando coragem, num esforço quase hercúleo, apertou o botão e voltou a gravar.
"De repente, uma música soou por toda a casa.
"Era uma sonata de piano, triste, melancólica, que ia e vinha em tons baixos, quase como ondas no mar
"Ficamos olhando em volta, procurando a fonte de tal música, com medo.
"A música era ao mesmo tempo bela e terrível, uma música devastadora, cruel e fria, numa melodia que só absorveria completamente o momento se...".
Parou, percebendo algo - tão simples tão óbvio.
"A energia caiu de repente, e a sala foi tomada pela luz da lua - cheia, que brilhava lindamente sobre o mar. Cláudia pulou para o sofá conosco e se encolheu, com medo. Estávamos todos com medo. Ana me olhou com um ar desesperado. 'Vá ver o que está errado, David, por favor!', aqueles olhos suplicavam.
"A luz da lua banhava a sala de um jeito tão fúnebre e sombrio, acompanhada pela música, numa ode demoníaca.
"Foi quando Thor saiu em disparada para a porta. 'Não, garoto!', gritei, pulando atrás dele. Cláudia começou a chorar no colo de Ana.
"A música continuava em seu tom depressivo, porém belo, enquanto eu corria para alcançar o cachorro.
"Quando eu cheguei à praia...", ele diz, mas não termina, os olhos cheios de lágrimas. A noite agora um pouco mais profunda do que antes, um pouco mais letal. Soluçando, ele esfrega os olhos e volta a narrar.
"Quando... Quando eu cheguei à praia, Thor estava parado olhando o mar. Eu parei atrás dele, estacando de repente, como se já soubesse o que estava porvir. Se eu soubesse, porém, teria enlouquecido, e morrido na minha loucura.
"Havia uma névoa forte cobrindo o mar, e, além da orla, não se via nada. A luz da lua refletia na água com tons enegrecidos.
"Era um barco simples, de madeira, com uma única pessoa pilotando. Era (o que parecia ser) um homem, muito alto, esguio, usando uma capa preta sem capuz, de manga comprida, que vinha até a cintura e se abria no sino que lhe cobria as pernas.
"Nunca pude ver o rosto dele, pela escuridão e pela névoa, mas vi o que estava em suas mãos.
"Era um... Um... Um cajado longo, perigoso, poderoso, como a própria morte e sua foice, ou algo até pior.
"Eu já tinha ouvido aquela música, e ouço-a mais ainda desde então, nos meus sonhos. Nos meus sonhos aonde aquele homem no barco vem e me chama para ele. 'Mas é muito fundo aí', digo, sentado na areia da praia, fraco. Cláudia aparece no barco, pondo os pezinhos na água. 'Não é, não, papai, é bom'. Ah, e eu resisto, eu resisto, eu nunca vou, eu sempre fico na praia, suplicando que eu acorde. E eu acordo, mas essa música... Continua comigo, o dia todo. Às vezes ela vai embora, mas sempre volta.
"Então Thor corre até o barco como se tivesse sido chamado - e eu acredito que tenha sido.
“'THOR! NÃO!', Cláudia grita, e eu percebo que estão as duas atrás de mim, na porta de casa, abraçadas. Ela se solta da mãe, e passa por mim, impotente - oh, eu ainda posso sentir o vento passando por mim enquanto ela corria; como eu me arrependo de não ter-lhe agarrado.
"Thor está nadando fundo agora, e ela ia atrás, nadando. Ana correu e gritou 'FAÇA ALGUMA COISA, DAVID! FAÇA ALGUMA COISA! A SUA FILHA VAI MORRER!', e aquilo quebra a minha paralisia. Ana está nadando atrás de Cláudia com toda a força, e eu faço o mesmo, atrás das duas.
"Thor nada sem prestar atenção ao desespero da garota atrás dele, sem olhar para trás, antes de desaparecer sob o tapete de água, e não voltar. Cláudia mergulha para tentar pegá-lo, e Ana vai atrás.
"Cláudia volta à tona, e eu nado o mais rápido possível para ela, e ela grita, ela grita. 'PAI! MÃE! O THOR FOI LEVADO!', chorando, 'MEU CACHORRO!'. Ela submerge de repente, como se puxada por algo, algo feio e horrível - pelos afogados e seus úmidos ossos putrefatos. Ana grita por ela, até que é puxada também".
Eu agarro a mão de Ana e puxo o quanto posso. Debaixo d'água, posso ver uma mãozinha branca iluminada pela luz da lua, cujo corpo está oculto pela escuridão absoluta do fundo do mar; a mãozinha agarrada ao tornozelo da minha mulher, puxando. "'TIRE-NOS DAQUI, DAVID! TIRE-NOS DAQUI!', ela grita, tentando respirar, enquanto eu puxo, puxo, puxo até quase rasgar os braços.
"Mas eu estou afundando junto dela, sendo arrastado para aquelas profundezas obscuras que sabe-se lá o que guardam.
"E eu estou morrendo de medo. Estou morrendo, morrendo de medo.
"E, com um último puxão, eu solto".
Ele pára de falar, chorando em grandes goles de ar, se sentindo miserável.
"EU SOLTEI, CARAMBA! EU SOLTEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEI! EU SOLTEI A MÃO DELA, EU DEIXEI MINHA MULHER E MINHA FILHA SE AFOGAREM PORQUE EU SOU UM MALDITO FRACOTE!"
Sob a luz da lua, David grita, grita, grita, até sentir a garganta rasgar.
Mas ele tem um dever, o dever de ir até o final.
Se recuperando do ataque, ele continua.
"Eu nadei desesperadamente até a praia, virei-me, e vi o homem no barco sorrir. Eu não sei como. Àquela distância, não devia ser possível. Mas eu o vi sorrir um sorriso psicótico ao som da música.
"E desapareceu na névoa, tal como veio.
"Eu não sei quando a música parou de tocar. Desmaiei apoiado na parede da casa portuária, olhando o mar. No dia seguinte, peguei meu carro e saí de lá. Voltei para casa, onde comecei a ter os sonhos em que o homem no barco aparecia.
"Fiz terapia e quase fui internado. Meu psicólogo disse para eu voltar e encarar meus medos, perceber que nada daquilo havia sido real, que o cachorro da minha filha correu para o mar, e ela foi junto, acabando por afogar os três. Os corpos nunca foram achados, mas... Eu não sei". 
Desliga o gravador e percebe que é noite. Percebe a névoa sobre o oceano. 
Percebe a luz da lua cheia - cheia de vida e cheia de morte.
A música começa a tocar, vinda de qualquer lugar. De repente, ele sabe que música é aquela.
"Moonlight Sonata", diz, com um pequeno sorriso.
Ele sai e vai até a praia, a casa na completa escuridão.
Da névoa, o conhecido barco aparece.
O homem está lá, como esteve naquele dia, como se ainda fosse a mesma noite.
E o chama.
Cláudia e Ana aparecem, com Thor do lado delas, e, naquele momento, ele se esquece de tudo - elas estão lá, vivas.
Elas o chamam, sorrindo sorrisos que deviam estar mortos há tanto tempo.
Mas ele não percebe isso - elas estão vivas e bem, e isso é o que importa -, e ele vai.
Ele entra na água andando, e segue andando até não poder tocar o fundo.
A música finalmente chega ao final, e ele está sorrindo.
Sob a luz da lua, ele se afoga.