sexta-feira, 12 de agosto de 2011

O Porto e a Luz da Lua

"Ok, o meu psicólogo me mandou fazer isso", disse ele, sentado num sofá de uma sala de estar bem iluminada, com o som das ondas quebrando na praia, segurando um gravador. "Tudo começou três anos atrás, quando eu e minha família - minha mulher e minha filha - viajamos até a essa casa portuária alugada, para passarmos um fim-de-semana sozinhos, sem a confusão da cidade", dizia.
"Nós nunca tínhamos tempo um para o outro - eu e meu trabalho nas relações públicas de uma empresa grande, Ana na faculdade. Cláudia no meio, pobrezinha - nós mal a víamos.
"Por isso, essa viagem de fim-de-semana, que nós programávamos há tanto tempo, era tão especial".
"Saímos no sábado bem no começo da tarde, Cláudia radiante com a viagem de ferry boat que faríamos, Ana, minha esposa, sentada ao meu lado, dormindo a viagem inteira.
"Éramos uma família... Feliz, e aquele fim-de-semana prometia-nos um bom descanso", um suspiro, não acreditando nas próprias palavras. Na sua cabeça, o psicólogo, para quem estava fazendo aquela fita, pedia a ele pela verdade, e só a verdade. Ninguém o julgaria mais.
Ele pensa, enquanto fala ao gravador, no quanto daquilo é verdade. Eram mesmo uma família meio desencontrada mas feliz? Não éramos um casal em decadência, um casal que jamais deveria ter sido. Um casal que teve uma filha para salvar um casamento em pedaços.
Ele tinha uma amante. Não era um emprego que levava a maior parte do tempo - era a vida dupla dele. Seu desejo interno de sair de casa e nunca voltar. E ela não sentia o mesmo?
Então porque ainda estavam juntos? Sua amante desejava ser a única dele, queria ver-se livre de Ana.
Mas havia Cláudia, oh, tão inocente, tão pura, presa com um casal de monstros que só lhe permitiram a existência por puro egoísmo. Medo. Comodismo. Não queriam encarar o fracasso de frente.
Depois do acontecido, ele nunca mais falou com a amante.
A culpa o corroia por dentro.
David, redento, agora sentava no mesmo sofá que sentara três anos antes, e chorava, com o gravador jogado num canto, ainda gravando, esperando que ele retomasse donde havia parado. Ele respira fundo, enxuga os olhos, firme e confiante. Olha o gravador jogado no canto, e decide continuar - não iria desistir ali, custasse o que custasse.
"Não... Não éramos felizes. Exceto por Cláudia - ela estava sempre sorrindo.
"Eu e Ana, nós... O amor já havia acabado. E todo dia somava-se a uma pilha de decepções", suspira, "Essa viagem era nosso ópio, nossa ilusão de que tudo estaria bem. Mas não estava".
"Mas, voltando ao carro, trouxemos, também, o Golden Retriever da minha filha, Thor, que estava balançando a cauda, contente da vida, com a cabeça do lado de fora do carro".
"Chegamos em pouco tempo - Cláudia logo se cansou da viagem no ferry, e foi dormir também com Thor aninhado no colo; eu fiquei dirigindo sozinho, aproveitando a calmaria".
Ele se ajeitou no sofá, sabendo bem demais que estava perto da parte mais difícil. "Vá com calma, David, vá com calma e não se preocupe com o tempo - apenas chegue lá", o psicólogo dizia, mas ele mesmo não estava seguro daquilo. Em tudo que olhava, só havia lembranças, em tudo que tocava, podia até sentir o calor delas lá, como se elas tivessem acabado de estar lá; em tudo que cheirava, vinha-lhe o perfume de Ana, o cheiro de criança de Cláudia, até mesmo o cheiro de Thor. Ele estava sozinho na casa portuária, sentado no sofá, divagando com o gravador ligado, gerando um silêncio de vários segundos na gravação. De repente voltou a si, prosseguindo com a gravação, afastando aqueles pensamentos da cabeça.
"Assim que chegamos, desfizemos as malas e fomos até a varanda, conversar. Cláudia e seu cachorro foram correr na praia, enquanto eu e Ana dividíamos uma boa margerita, só para passar o tempo. Naquele momento, tão simples, dividindo uma bebida com a minha mulher no fim da tarde, conversando. Será que eu ousei pensar que tudo se resolveria? Será que ela pensou assim?
"Eu penso, será que, à noite, faríamos amor como nunca havíamos feito antes, e, de manhã cedo, comeríamos o pão um do outro, sorrindo como dois adolescentes?
"Acho que eu cheguei a pensar tanta tolice. Mas, eu me pergunto, será que ela também pensou?".
Um vento frio veio da porta, anunciando a todos os moradores que a tarde estava no seu final, e que a noite seria gélida.
"Almoçamos o que havíamos trazido da cidade - hambúrgueres e refrigerante -, o que também constituiria o nosso jantar, apesar de Ana ter reclamado. 'Isso engorda muito! Vamos comer isso aí amanhã também?', ela disse, mas acabou comendo também.
"Infelizmente, não foi isso que almoçamos no dia seguinte".
Estava entardecendo, e David estava se cansando daquilo tudo, e a noite estava subindo por suas coxas, espreitando a chance de invadir de vez o seu espaço. Mas ele se lembrava das palavras do psicólogo, que dizia para ele ir em frente e não desistir sem ter coberto o máximo possível. Continuou:
"A noite caiu bem rápido, provavelmente porque estávamos nos divertindo bastante, então nós jantamos e nos reunimos na sala de estar, onde eu estou sentado agora. Cláudia se sentou no chão com Thor; eu e Ana ficamos neste mesmo sofá, abraçados.
"Minutos se passaram enquanto nós conversávamos - sobre tudo, sobre nada, jogar conversa fora -, e nós nem percebemos o tempo passar, rindo das brincadeiras da garota com o cachorro; eu provavelmente ainda estava pensando na nossa possível noite porvir".
Dessa vez ele desligou o gravador antes de voltar a falar.
Essa era realmente a parte difícil, a parte em que tudo foi ao Inferno, a parte que até hoje lhe assombrava os sonhos.
Tomando coragem, num esforço quase hercúleo, apertou o botão e voltou a gravar.
"De repente, uma música soou por toda a casa.
"Era uma sonata de piano, triste, melancólica, que ia e vinha em tons baixos, quase como ondas no mar
"Ficamos olhando em volta, procurando a fonte de tal música, com medo.
"A música era ao mesmo tempo bela e terrível, uma música devastadora, cruel e fria, numa melodia que só absorveria completamente o momento se...".
Parou, percebendo algo - tão simples tão óbvio.
"A energia caiu de repente, e a sala foi tomada pela luz da lua - cheia, que brilhava lindamente sobre o mar. Cláudia pulou para o sofá conosco e se encolheu, com medo. Estávamos todos com medo. Ana me olhou com um ar desesperado. 'Vá ver o que está errado, David, por favor!', aqueles olhos suplicavam.
"A luz da lua banhava a sala de um jeito tão fúnebre e sombrio, acompanhada pela música, numa ode demoníaca.
"Foi quando Thor saiu em disparada para a porta. 'Não, garoto!', gritei, pulando atrás dele. Cláudia começou a chorar no colo de Ana.
"A música continuava em seu tom depressivo, porém belo, enquanto eu corria para alcançar o cachorro.
"Quando eu cheguei à praia...", ele diz, mas não termina, os olhos cheios de lágrimas. A noite agora um pouco mais profunda do que antes, um pouco mais letal. Soluçando, ele esfrega os olhos e volta a narrar.
"Quando... Quando eu cheguei à praia, Thor estava parado olhando o mar. Eu parei atrás dele, estacando de repente, como se já soubesse o que estava porvir. Se eu soubesse, porém, teria enlouquecido, e morrido na minha loucura.
"Havia uma névoa forte cobrindo o mar, e, além da orla, não se via nada. A luz da lua refletia na água com tons enegrecidos.
"Era um barco simples, de madeira, com uma única pessoa pilotando. Era (o que parecia ser) um homem, muito alto, esguio, usando uma capa preta sem capuz, de manga comprida, que vinha até a cintura e se abria no sino que lhe cobria as pernas.
"Nunca pude ver o rosto dele, pela escuridão e pela névoa, mas vi o que estava em suas mãos.
"Era um... Um... Um cajado longo, perigoso, poderoso, como a própria morte e sua foice, ou algo até pior.
"Eu já tinha ouvido aquela música, e ouço-a mais ainda desde então, nos meus sonhos. Nos meus sonhos aonde aquele homem no barco vem e me chama para ele. 'Mas é muito fundo aí', digo, sentado na areia da praia, fraco. Cláudia aparece no barco, pondo os pezinhos na água. 'Não é, não, papai, é bom'. Ah, e eu resisto, eu resisto, eu nunca vou, eu sempre fico na praia, suplicando que eu acorde. E eu acordo, mas essa música... Continua comigo, o dia todo. Às vezes ela vai embora, mas sempre volta.
"Então Thor corre até o barco como se tivesse sido chamado - e eu acredito que tenha sido.
“'THOR! NÃO!', Cláudia grita, e eu percebo que estão as duas atrás de mim, na porta de casa, abraçadas. Ela se solta da mãe, e passa por mim, impotente - oh, eu ainda posso sentir o vento passando por mim enquanto ela corria; como eu me arrependo de não ter-lhe agarrado.
"Thor está nadando fundo agora, e ela ia atrás, nadando. Ana correu e gritou 'FAÇA ALGUMA COISA, DAVID! FAÇA ALGUMA COISA! A SUA FILHA VAI MORRER!', e aquilo quebra a minha paralisia. Ana está nadando atrás de Cláudia com toda a força, e eu faço o mesmo, atrás das duas.
"Thor nada sem prestar atenção ao desespero da garota atrás dele, sem olhar para trás, antes de desaparecer sob o tapete de água, e não voltar. Cláudia mergulha para tentar pegá-lo, e Ana vai atrás.
"Cláudia volta à tona, e eu nado o mais rápido possível para ela, e ela grita, ela grita. 'PAI! MÃE! O THOR FOI LEVADO!', chorando, 'MEU CACHORRO!'. Ela submerge de repente, como se puxada por algo, algo feio e horrível - pelos afogados e seus úmidos ossos putrefatos. Ana grita por ela, até que é puxada também".
Eu agarro a mão de Ana e puxo o quanto posso. Debaixo d'água, posso ver uma mãozinha branca iluminada pela luz da lua, cujo corpo está oculto pela escuridão absoluta do fundo do mar; a mãozinha agarrada ao tornozelo da minha mulher, puxando. "'TIRE-NOS DAQUI, DAVID! TIRE-NOS DAQUI!', ela grita, tentando respirar, enquanto eu puxo, puxo, puxo até quase rasgar os braços.
"Mas eu estou afundando junto dela, sendo arrastado para aquelas profundezas obscuras que sabe-se lá o que guardam.
"E eu estou morrendo de medo. Estou morrendo, morrendo de medo.
"E, com um último puxão, eu solto".
Ele pára de falar, chorando em grandes goles de ar, se sentindo miserável.
"EU SOLTEI, CARAMBA! EU SOLTEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEI! EU SOLTEI A MÃO DELA, EU DEIXEI MINHA MULHER E MINHA FILHA SE AFOGAREM PORQUE EU SOU UM MALDITO FRACOTE!"
Sob a luz da lua, David grita, grita, grita, até sentir a garganta rasgar.
Mas ele tem um dever, o dever de ir até o final.
Se recuperando do ataque, ele continua.
"Eu nadei desesperadamente até a praia, virei-me, e vi o homem no barco sorrir. Eu não sei como. Àquela distância, não devia ser possível. Mas eu o vi sorrir um sorriso psicótico ao som da música.
"E desapareceu na névoa, tal como veio.
"Eu não sei quando a música parou de tocar. Desmaiei apoiado na parede da casa portuária, olhando o mar. No dia seguinte, peguei meu carro e saí de lá. Voltei para casa, onde comecei a ter os sonhos em que o homem no barco aparecia.
"Fiz terapia e quase fui internado. Meu psicólogo disse para eu voltar e encarar meus medos, perceber que nada daquilo havia sido real, que o cachorro da minha filha correu para o mar, e ela foi junto, acabando por afogar os três. Os corpos nunca foram achados, mas... Eu não sei". 
Desliga o gravador e percebe que é noite. Percebe a névoa sobre o oceano. 
Percebe a luz da lua cheia - cheia de vida e cheia de morte.
A música começa a tocar, vinda de qualquer lugar. De repente, ele sabe que música é aquela.
"Moonlight Sonata", diz, com um pequeno sorriso.
Ele sai e vai até a praia, a casa na completa escuridão.
Da névoa, o conhecido barco aparece.
O homem está lá, como esteve naquele dia, como se ainda fosse a mesma noite.
E o chama.
Cláudia e Ana aparecem, com Thor do lado delas, e, naquele momento, ele se esquece de tudo - elas estão lá, vivas.
Elas o chamam, sorrindo sorrisos que deviam estar mortos há tanto tempo.
Mas ele não percebe isso - elas estão vivas e bem, e isso é o que importa -, e ele vai.
Ele entra na água andando, e segue andando até não poder tocar o fundo.
A música finalmente chega ao final, e ele está sorrindo.
Sob a luz da lua, ele se afoga.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Enchendo linguiças


Esta é a notinha que emitiram em Zimbábue (clique para aumentar).
Não, você não leu errado, essa é uma nota de CEM TRILHÕES DE DÓLARES zimbabuanos rsrs
100.000.000.000.000,00 Z$

The Zimbabwean Dollar is the currency of Zimbabwe. The currency code for Dollars is ZWD, and the currency symbol is Z$. Below, you'll find Zimbabwean Dollar rates, a currency converter, Zimbabwean Dollar News and more. You can also subscribe to our currency newsletters with daily rates and analysis, or take ZWD rates on the go with our XE Mobile apps for your iPhone, BlackBerry, or even your regular phone.

Notice: The Zimbabwe dollar has been suspended indefinitely.
In January 2009, the Reserve Bank of Zimbabwe permitted the use of foreign currency in Zimbabwe in response to an economic decline that caused inflation levels of 5 billion percent. By April 2009, the Zimbabwe dollar was suspended indefinitely; the government now uses the South African Rand, the United States Dollar, and the British Pound. For more information, read the BBC's "Zimbabwe dollar 'not back soon'".
Sim, é isso que vocês leram. Em 2009, a inflação chegou a níveis tão altos que nem uma nota de 100 trilhões era absurda por lá.
"Mas, Matheeeeeeeus, por que cargas d'agua você está postando essa inutilidade???"
Ora, agora que vem a parte polêmica, jovem gafanhoto.
Sabem quanto essa nota valia antes do Dólar Zimbabuano fechar por completo?
Dez reais?
Cinco?
Menos?
Segundo o XE - The World's Favorite Currency Site -, esse era o valor:

100,000,000,000,000.00 ZWD =451,033,263,664.24 BRL
Zimbabwean Dollar Brazilian Real
1 ZWD = 0.00451033 BRL 1 BRL = 221.713 ZWD

Agora, por favor, alguém me explique como uma moeda visivelmente falida poderia valer tanto?
Sério.
Se essa nota ainda estivesse rodando, eu estaria voando para Zimbábue agora, para pegar algumas dessas no chão, sei lá u.u



P.S.: Gente, sei que prometi alguns posts ai, mas, eu gostaria de dizer que não deu para fazer nada nesses dias (o que é parte da razão de eu estar postando essa cultura inútil e desinteressante - eu só precisava postar algo -,  prometi-me algo polêmico, mas todas as polêmicas já não eram tãããão polêmicas assim, então eu vi isso no 9gag, então resolvi postar, ok?), e ontem o servidor do Blogger resolveu dar problema, então nada pude escrever ontem à noite. Vou fazer um pacto comigo mesmo e postar algo de noite!
Não esperem acordados, eu só funciono de madrugada.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

"Independentemente do que diga o seu confiável Timex" - Parte Um

Olhou para o relógio e este anunciava em grandes números brilhantes - três horas da manhã.
Ela lentamente se levantou da cama, balançando a cabeça incompreensiva, esfregando os olhos incrédulos.
Lera em algum lugar sobre isso, a ilusão de horário humana.
"Agora é noite, e a hora é nenhuma".
Fosse o que fosse, era tarde.
Ela era uma mulher alta e magra, muito branca, branca até à anemia.
Seu nome era Charlotte.
De pronto, olhou para o quarto escuro, detentor dos seus poucos bens materiais, em busca do papel -oh, aquele papel era tão importante para ela quanto sua vida, até mais.
Pegou-o sobre um livro qualquer, talvez até o mesmo em que tivesse lido aquela frase.
"Agora é noite, e a hora é nenhuma".
Vestiu-se rapidamente das vestes negras sem se preocupar com o banho - havia tomado um antes de ir dormir.  Prendeu os negros cabelos num coque arrojado, primando a mobilidade.
Saiu do quarto e olhou o corredor escuro.
A menina Charlotte - Charlie, na escola - tinha medo de escuro. Tinha medo daquilo que ganhava vida e forma na escuridão, do que podia, no escuro, rastejar para fora de seu úmido esconderijo em busca de presas. Mas a Charlotte adulta não tinha medo do escuro.
Já havia visto coisas demais para temer o escuro.
Portanto, começou a andar pelo apartamento, indo até a cozinha, localizando suas chaves, e finalmente se dirigindo até a porta.
Abriu a porta e saiu.

- - - - - -

Nenhum ônibus roda as três da manhã, tampouco algum pedreste, mas carros? Sim, havia muitos carros na ruas àquele horário.
Havia, portanto, uma ambulância insuspeita parada na frente do prédio, esperando-a.
"Entre", disse o motorista, e ela entrou, sentando-se ao seu lado.
Ao volante, havia um homem que não se apresentara, vestindo uma roupa completamente preta e um quepe que lhe escondia a testa toda.
"Pegou papel?", perguntou.
"Claro que sim, não esqueceria dele por nada".
"Então deixe-me ver"
Ele se virou para pegar o papel na sua mão, e, por um instante, a luz da rua iluminou toda a sua face, e Charlotte teve certeza de ter visto algo na sua testa, a que o quepe escondia, algo brilhante - enervante.
"Tem idéia de que horas são, mulher?, não me faça perder tempo!".
Foi quando ela se tocou de que estivera parada olhando para o lugar onde segundos antes esteve a testa do homem, e logo voltou a si com um leve chacoalhar de cabeça.
"Agora é noite, e a hora é nenhuma", pensou em dizer, mas ficou calada, e apenas entregou-lhe o papel.
"Muito bem, muito bem, você fez seu dever de casa
"Agora vamos ao trabalho".
Ele começou a manobrar a ambulância rapida e habilmente, enquanto Charlotte recostava a cabeça e observava o leve fluxo de carros da madrugada.
Nenhum deles disse nada por cerca de vinte minutos, até que houve um buraco de quê o motorista não pode se desviar, fazendo com que a ambulância caísse nele com um estrondo.
Ela ouviu coisas se revirando na parte de trás da ambulância, sem se preocupar com o barulho - certamente não havia ninguém por lá.
Então ela ouviu um grunhido.
Ela se virou e olhou pela janela que dava para o compartimento anterior do veículo.
Estava escuro, e não havia, afinal, nada para ser visto. Mas ela sentiu algo lá.
Sentiu um par de olhos a encarando com nada mais do que puro desprezo. Algo horrível, a olhando no escuro. Algo que sabia demais.
O motorista soltou um suspiro.
"Não há nada aí atrás, essa é só uma ambulância roubada, tudo bem?
"Não há nada aí".
Charlotte voltou rapidamente à posíção original e balançou a cabeça, concordando avidamente.
Naquele momento, ela começara a se perguntar sobre o escuro e o que ele esconde.
Se não temê-lo era a escolha certa.
"OK, garota, esta é a sua hora", o homem disse.
"Hã?"
"Chegamos, querida".
Ela assentiu com a cabeça, voltando a si. Tirou o cinto de segurança e abriu a porta.
Pôs um pé, depois o outro, na calçada da noite fria, iluminada pelos postes de luz.
Fechou a porta, e ouviu a ambulância ir embora.
Foi tomada por um súbito desejo de ver as horas, então levantou o pulso esquerdo e olhou o relógio prata.
Ele estava fazendo um barulho estranho, como se algo dentro dele tivesse quebrado.
Iluminados pela luz branca dos postes, os ponteiros do relógio estavam andando para trás e para frente num movimento desregrado.
Ela abaixou o pulso, se arrependendo de não ter trago nenhum celular.
"Quem quer que tenha escrito aquilo estava certo", falou em voz baixa.
"Agora é noite, e a hora é nenhuma".

terça-feira, 2 de agosto de 2011

A Rainha-Mariposa - Parte Três e Final


Espero que tenham gostado de lê-lo o quanto eu gostei de escrevê-lo :)

Acordou, e estava no céu. Na forma mais literal da palavra.
Voando acima das nuvens, carregado por aquela mulher, seguido por uma procissão de borboletas. Nem sentia mais os ferimentos. As asas dela batiam silenciosamente no ar, como vitrais vivos.
Ela riu um pouco, pois os seus cabelos castanhos e cacheados tinham caído no rosto de Rodrigo.
Ele levantou a cabeça, rindo com ela.
“Melissa, aonde vamos?”.
“Vamos a um lugar especial”, disse, “um jardim secreto”.
Ele pensou naquilo, enquanto via as nuvens passarem correndo por baixo de si.
Viam-se manchas de verde aqui e ali, surgindo furtivas entre o branco imaculado das nuvens. À frente, nada mais além do horizonte azulado, perpassado por algumas nuvens que subiam em colunas áureas. Tentou não olhar para baixo, mas era impossível se conter.
As borboletas seguiam calmamente atrás e ao lado deles.
“E é longe?”, perguntou, inseguro.
“Nem tanto.”, disse ela, rindo “Mas vamos dar uma guinada para cima agora! Segure-se!”.
Ele tentou reclamar, dizer que já estava sentindo vertigens àquela altura, que achava melhor que se mantivesse lá, mas os braços fortes da garota já o tinham apertado, e suas asas já trabalhavam rapidamente numa subida brusca, e suas palavras se perderam no vento forte.
As borboletas também subiram alto com eles.

– – – – –

Melissa voou com Rodrigo até um ponto em que não havia mais nuvens acima deles. Estavam voando acima de um compacto tapete de nuvens.
O sol parecia estar perto demais, e a luminosidade se tornava insuportável. Rodrigo teve que fechar os olhos e tapá-los com uma das mãos, enquanto Melissa dizia algo que não conseguiu ouvir.
”O que disse?”.
“Eu?”, perguntou a linda jovem, “Nada... Só reparei o quanto é bonito aqui em cima”.
Ele riu alto.
“Eu não posso ver nada, mas aposto que é muito bonito mesmo...
“Onde estamos indo, Melissa?”.
Ela ficou calada, e Rodrigo percebeu que já perguntara demais.
Relaxou, e só aproveitou a viagem, calmamente deslizando para um sono sem sonhos.
O sonho que ele tinha já estava com ele.


Quando acordou, Melissa chamou-lhe a atenção com um pequeno chacoalho.
“Vamos descer”.
Ele abriu os olhos e viu que ainda era manhã, e que pouco tempo havia se passado desde que caíra naquele sono cansado e estranho. “Deve ser a falta de oxigênio”, pensou.
Ela se inclinou para baixo, juntamente com todas as outras borboletas, e ele logo estava de cabeça para baixo no ar, descendo como um torpedo. As asas curvando-se numa flecha nas costas de Melissa; seus longos e castanhos cabelos puxados pelo vento.
Eles entraram numa nuvem cinza, e, como uma flecha, saíram de lá.
Viu o verde do chão se formando rapidamente no mundo branco de nuvens.
Viu uma grande clareira.
Um jardim.
Borboletas.
Ela se curvou subitamente de novo, e então estavam de pé, as asas dela batendo levemente, com eles pairando no ar até que aterrissassem.
Ele caiu no chão de costas, e logo se sentou. Ela ficou de pé na sua frente.
Por um momento, apenas se olharam.
Então, ele tomou conhecimento do que havia ao seu redor.
Era realmente um jardim secreto.

– – – – – –

Era lindo.
Flores por todo lado, grama, árvores. Insetos, abelhas, beija-flores, borboletas.
Bancos de pedra aqui e ali, para que casais pudessem sentar e namorar, envoltos por todo aquele espetáculo.
Rodrigo logo reconheceu aquele cenário.
“Eu... Eu conheço esse lugar”, disse, “Eu vinha aqui todas as quartas-feiras. Minha mãe me levava, quando eu era bem pequeno, lá na nossa terra natal, aqui na Bahia.
“Eu costumava sentar aqui mesmo, e tentava pegar as borboletas.
“Minha mãe sentava e observava, sorrindo para mim de quando em quando.
“Mas ela morreu há muito tempo, e tive que ir para Salvador, morar com o meu pai.
“Não vinha aqui há anos”.
Ela sorriu para ele, e deu dois passos à frente, ficando bem no centro do grande jardim.
“Você sente saudades disso aqui, não é?”.
Ele concordou com a cabeça, chorando um pouco.
Ela se curvou e apoiou as mãos nos joelhos, como faria com uma criança.
“Você ficaria aqui para sempre, não ficaria?”.
Chegou seu rosto mais perto do dele, e ele se levantou, mantendo a curta distância entre os dois.
“V-v-v-você faria isso?”, perguntou ele, com grandes olhos lacrimejantes.
“Tudo o que você quiser, meu amor”.
“Você é realmente um anjo” ele sorriu, entre lágrimas.
“Apenas... Deixe-me... Uma coisa...”.
“Qualquer coisa”.
“Qualquer coisa?”.
“Não interessa o quê”.
Ela chegou mais perto. Os olhos verdes se fincando nos dele, hipnotizando-o.
Abriu a boca numa conhecida expressão de beijo. Ele não hesitou, e chegou mais perto também.
À sua volta, o mundo perdeu luz. Não era mais manhã.
O mundo perdeu cor e forma. Não era mais um jardim colorido. Não era mais uma clareira.
O mundo adquiriu sua forma concreta. E não era bonita.
Um posto de gasolina à noite.
Cinco corpos desfigurados jogados num canto.
Rodrigo não notou nada daquilo. Somente avançou no beijo mortal.
A cada segundo que passava, a cada movimento que aquela criatura angelical fazia, a pele dela se rasgava como papel. Uma ilusão desfeita, como um truque revelado no fim do show de mágica.
Primeiro as pernas, antes sempre envoltas por aquele vestido rosa fraco, despontaram pouco a pouco como pedaços obscenos que deveriam ter ficado para sempre debaixo daquele vestido. Marrons e de formas duras, como pernas de insetos.
Os braços rasgaram aquela pele macia, branca, perfeita, e deles – e de boa parte do torso – saíram quatro braços cujas terminações não eram as bem cuidadas mãos de Melissa, mas puras garras, um deles com uma longa ponta ossuda, como uma espada natural dela.
As costas dela explodiram rapidamente, e as lindas asas de borboletas caíram no chão juntamente aos restos de pele, e delas saíram duas longas asas.
Não asas ornamentadas e bem-trabalhadas, como as antigas.
Asas toscas e marrons, escurecidas, e sem forma.
Asas de mariposa.
Por fim, o rosto e os cabelos finalmente se desfizeram no ar, aquele sorriso sincero no rosto de beleza incomum saindo como uma máscara que encobria algo que nem nos piores pesadelos alguém poderia ter visto – e era bem isso o que ela era.
O corpo que aquele ser que se parecia com uma mariposa humanóide – ou, como Rodrigo viria a chamá-la internamente, A Rainha-Mariposa – chamava de Melissa havia desparecido por completo, juntamente com toda a doçura que jamais tivera. E Rodrigo teria sido apenas mais um na lista dela, se não percebesse o golpe a tempo de pular para trás.
Pulou para trás e viu o horror em forma de inseto formando diante dos olhos.
Sua cabeça não era nem de longe o mais horrível naquele corpo deformado. O torso todo segmentado, com uma espécie de fluido entre as fendas articulatórias. Os quatro braços, a garra enorme e ossuda que saía de uma das mãos que aquela criatura tinha. As pernas igualmente blindadas caídas livremente pelo corpo suspenso no ar, flutuando pelas enormes asas de inseto.
Rodrigo rastejou para trás, temendo que o bicho se aproximasse. Olhou para os lados e viu que o que até então pensara ser borboletas, eram mariposas grandes e marrons, voando por todos os lados. Subitamente, soube de onde vinha o fedor que o deixara tão deprimido.
Girou-se num pulo e começou a correr com todas as forças que tinha. Olhou os corpos espalhados pelo posto de gasolina e tentou não pensar se seu fim seria parecido com o daquelas pessoas.
Mas ela só os matou, não os comeu”, pensou, tristemente – a certeza de que ela queria comê-lo.
A mariposa-rainha voou atrás dele, enquanto ele tentava se esconder na loja de conveniência do posto.
“Aquela pele... Aquele rosto, aquela beleza estranha... Não passava de um casulo? A lagarta faminta arranjando uma presa para comer após a saída daquele invólucro de ilusões?”, pensou, enquanto suas mãos nervosas abriam seu caminho até a lojinha de conveniência.  Caiu lá dentro como se o chão tivesse acabado de repente, e começou a rastejar até atrás de algumas prateleiras.
Tremendo de medo, ouviu a mariposa gigante quebrando as vitrines e a porta de vidro, seguida por uma nuvem de mariposas que invadiram o lugar.
A criatura soltou um grunhido sem forma e adentrou a loja, suas asas destruindo tudo à sua volta, e fazendo o ar inteiro amolecer com suas rajadas de vento.
Rodrigo se encolheu de medo. Que mais podia fazer? A mariposa era implacável, e ele tinha fugido para o único lugar sabem-se lá quantos quilômetros de casa.
Ele começou a chorar baixinho no seu canto escondido, sentindo os olhos da mariposa perscrutando a loja, à procura do jantar fugitivo.
Levantou os olhos e viu uma das centenas de mariposas que empestavam o lugar voando e olhando para ele.
“Não, amiguinha, não faça nada!”, pensou, mas a mariposa voou embora, voou até sua líder insana.
A lança ossuda do braço da Rainha-Mariposa perfurou completamente a estante em que se apoiava, bem ao seu lado.
A estante se levantou no ar, sacudida pelo braço-lança, e Rodrigo se viu completamente indefeso. Virou-se para a monstruosidade que estava tomando a paisagem e decidiu correr. Não sabia para onde, mas devia correr, devia aproveitar a chance única em que ela estava ocupada.
E ele correu.
Passou por debaixo das asas esvoaçantes da Rainha-Mariposa.
Rolou até as bombas e caiu no chão. A mariposa estava de volta, livre da estante.
Ela veio rapidamente, com um ar de quem já havia cansado de perseguir o oponente. Rodrigo se pôs de pé, enquanto via um dos braços da mariposa – o que tinha a lança de osso – se levantar e se preparar para o ataque, como um cavaleiro numa justa contra um inimigo desarmado.
“Uma chance”, pensou.
Na sua cabeça, a contagem regressiva começou.
3.
2.
1.
O braço da mariposa atacou de uma só vez, e Rodrigo se colocou atrás de uma das bombas.
Como uma flecha, o braço atravessou a bomba de gasolina por inteira.
Chegou em Rodrigo, que caiu para trás e começou a se afastar rapidamente.
A despeito do sangue que fluía rapidamente da sua barriga, ele conseguiu se afastar o suficiente da Rainha-Mariposa, agora brigando contra a bomba, presa firmemente no chão.
“Ó, bom Deus, se está aí, que o dono do posto tenha esquecido a bomba ligada”, pensou.
A mariposa gritou, e arrancou a bomba do chão com tudo, num último ato de glória, levantando-a no ar como um troféu, o cheiro rançoso de gasolina se espalhando pelo ar enquanto a mesma derramava-se sobre a rainha-inseto.
Sentiu nos bolsos, e viu que o isqueiro continuava lá. Riu um pouco.
Acendeu a chama e o atirou com tudo em cima da criatura.
Incendiou a gasolina no chão e na própria mariposa. A bomba explodiu numa bola de fogo que tomou conta de toda a visão.
Rodrigo talvez tivesse se queimado naquele fogo, mas isso pouco importava para ele.
“QUEIME NO INFERNO, SUA DESGRAÇADA!”, gritou com todas as forças, apreciando a vista da Rainha-Mariposa gritando e queimando, se autodestruindo, e queimando toda a legião de mariposas que a seguiam.
Deixou a cabeça cair no chão, deitado na areia do acostamento da estrada, esquecendo os sons do ambiente. Chegou a ouvir a doce voz de Melissa clamando por ajuda no meio do fogo. Ignorou-a até onde pôde, mas ela continuou chamando e gritando, e ele achava que aqueles gritos iam enlouquecê-lo.
Outra bomba finalmente explodiu, e foi o fim de toda aquela gritaria.
Rodrigo ficou deitado no chão, calmo e tranqüilo.
Sentia frio e sono.
“Aonde será que estou?”
Deixaria isso para depois.
De fato, só o que ele queria fazer agora era dormir.
Dormir e não sonhar mais.
Não com borboletas.