sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Lenda Urbana

Conta-se por aí, em becos velhos, por bocas sujas, dentes amarelados, entre cigarros e cerveja, em tons lentos, calmos e mortais, sobre a história da Mulher Vermelha.
Não é uma lenda muito forte, isso é verdade, pois quem a vê uma vez quase nunca conta, tal é o horror do encontro. Os que falam, porém, são feitos loucos, ou viram catatônicos - a encarar o fundo da sala até chegar a ver por dentro da parede, naquela escuridão imensamente pequena, aonde tudo se perde e nada significa coisa alguma.
Diz-se que nada pode explicar a aparição da mulher.
Ela vem quando quer.
Contam-se vários casos, depende daonde você ouve a história, mas o mais famoso é o de Anita.
Anita era uma garota que, por fora, pareceria comum, mas, por dentro, ela tinha traumas maiores do que sua estatura possa transparecer.
Anita nunca conheceu o pai, pois ele deixou ela e a mãe antes dela nascer. "Foi arranjar emprego na mina, sabe?", dizia a mãe, sempre que o assunto surgia.
"O dinheiro já deve estar chegando...", dizia, e repetia aquele mantra de auto-enganação o tempo todo.
Vinte anos passam e ela se vê na faculdade, vendo o mundo, sustentando o ódio contra o pai que nunca vira. Aquele ódio cresceu e se transformou num ódio a todos os homens que conhecia, levando Anita a ter uma série de namorados em pouco tempo. Assim que um chegava, ela descobria mais e mais falhas nele, e fazia questão de apontá-las e destacá-las o tempo todo até que o coitado lhe largasse.
Anita descobriu que estava grávida naquele dia.
Passou a tarde trancada no dormitório da faculdade, chorando, sem saber o que fazer. O pai não queria nem saber dela - tinha deixado bem claro, ao deixá-la, "eu te odeio, sua puta, e eu me enojo de ter transado com você!". Ela também não tinha gostado muito - a idéia daquilo fazia ela se arrepiar de nojo -, mas ele insistiu. Fora tão insípida na cama como seria um peixe morto, e sabia disso.
Tinha feito de propósito.
Mas agora ela sentava na cama, com cinco testes de gravidez positivos no chão, o rosto inchado de tanto chorar.
Foi quando ela decidiu que não iria mais ligar para nada, iria sair e beber até não sentir mais o próprio cansaço, até não sentir mais Anita.


À noite, saiu para um bar no campus, sentou-se sozinha, pediu uma garrafa de uísque e metódicamente começou a beber.
Passaram-se alguma horas, chega o ex-namorado (pai da criança) e seus amigos, que a notam no momento em que entram no bar.
"Oooolha, quem aparece aqui!", diz um.
"Olha só quem resolve mostrar alguma emoção!", grita o ex, "'Tava chorando, princesinha?".
Ela não levanta os olhos da garrafa de uísque pela metade. Ele não está aqui, ele não está aqui.
"Responde, porra!", grita outro, mas ela não diz nada.
"Talvez ela só funcione a álcool", diz um terceiro, e joga um copo cheio de cerveja nela, rindo do próprio feito.
Ela fica encharcada da cerveja, e resolve não aguentar mais. Pega a garrafa de uísque e se levanta, indo para a porta, mas o ex-namorado a interrompe violentamente.
"Você não é ninguém, 'tá ouvindo? NINGUÉM!", grita, segurando os ombros dela e sacudindo-a com força.
"Some daqui, vadia!", grita um deles, e os outros gritam o mesmo, e ela vai embora.


A noite ia alta quando Anita vagava pelo campus vazio, segurando sua garrafa de uísque. Ainda ouvia os gritos do bar, mas eles iam ficando mais fracos à medida em que se distanciava deles.
Andou sem ver por onde até onde o uísque a pode levar, mas uma hora a garrafa acabou, e ela se sentou no chão, sem ver aonde, chorando.
Ela percebeu uma presença no ar, e levantou os olhos para ver a figura que se prostrava à sua frente.
Era um contorno que sugeria uma mulher toda de vermelho, com um lenço que escondia-lhe o rosto.
Ela tentou olhar para os seus pés, mas, dos joelhos para baixo, era tudo muito borrado para ver alguma coisa. Estou muito bêbada, pensou.
A mulher falou, numa voz rasgante, de gargantas secas, "Tem algum problema, minha criança?".
Anita só olhou para ela, depois para a garrafa de uísque vazia, e respondeu.
Contou-lhe seus problemas: sua mãe, o pai, o ex-namorado e seus amigos e o bebê.
Ou pelo menos pensou ter falado, àquela altura, ela estava tão fora de si que poderia ter somente pensado as palavras sem nunca dizê-las.
Mas a mulher responde, mesmo assim.
"Eu posso... Ajudar você", diz.
"Por um pequeno preço, você pode viver sem nenhum problema sequer...", e rompe-se numa risada restrita, como se o corpo não soubesse que estava rindo. A mulher de rosto coberto inclinava-se criando uma aura vermelha que pouco a pouco cobria a garota, e ela repete, como se concordando consigo mesma e admirando aquela oferta.
"Sim... Um pequeno preço...", diz ela.
"Qualquer... Qualquer coisa", diz a garota sonolenta, sem nem se dar conta de estar caindo no sono.
"Pois bem", responde a mulher.
Desaparece.


Anita acordou com sua cama molhada de sangue. Havia perdido o bebê durante a noite.
Sua colega de quarto chega e diz "não usou absorventes hoje?", mas o que quer dizer mesmo flutua até a superfície e ela trata de dizê-lo.
"Seu ex-namorado e os amigos... Bem, eles beberam muito durante a noite e saíram de carro", Eles estavam me procurando, pensa, mas não diz, porque não tem como justificar como ela sabe daquilo: ela só sabe.
"Oh, foi horrível, o carro deles bateu num caminhão e ele virou", ela diz, enquanto Anita tenta engolir a informação, "O motorista do caminhão viveu, mas eles...", não completa, mas Anita sabe exatamente o que aconteceu.
Eles foram procurá-la para pedir desculpas pelo o que eles fizeram, mas não encontraram em lugar nenhum do campus, então desitiram. Na volta, eles viram um vulto vermelho na estrada, tentaram desviar mas bateram no caminhão. Foram esmagados sem a menor chance de escapar.
Anita senta na cama suja de sangue, tentando descobrir o que viria a seguir.
De repente, seu celular toca. É a mãe.
Ela está tão feliz. As cartas finalmente chegaram, ela dizia, e tinha o dinheiro que o pai tinha ganhado na mina. Ela não sabia aonde ele estava, mas estava certa de que ele mandaria outras.
Mas Anita sabia o que acontecera.
Como mágica, ela via na cabeça o pai, velho, levantar-se de sua cama, sem olhar para esposa nem nada, sair de casa de pijamas, pegar a arma na gaveta, que guardava por segurança, viajar de carro por quilômetros até a cidade mais próxima, sacar dinheiro e enviar para a mãe.
E depois, claro, enfiar uma bala na própria cabeça.
Desligou o telefone e sentou na cama, admitindo o absurdo na cabeça. Foi aquela mulher de vermelho!, pensa, mas o que ela teria negociado em troca daqueles favores macabros?
E então, ela soube.


Anita fugiu de casa, de tudo e de todos.
Viveu como indigente por anos, afogando um buraco dentro de si com a bebida, mas sabia que nada adiantaria.
Quando a lembrança começou a enlouquecê-la, o município a mandou para um hospital psiquiátrico, aonde ela tentou se matar mais de quinze vezes, sem nunca conseguir.
Ela sabia, claro, que só morreria quando conviesse à Mulher Vermelha. Ela viria e lhe deixaria olhar os horrores escondidos debaixo do véu, e ela morreria, finalmente.
Mas, quando morresse, não iria nem para o céu, nem para o inferno.
Vagaria eternamente na sombra da Mulher Vermelha, junto com todos os outros tolos que obtiveram tudo o que desejavam.

2 comentários:

  1. Gostei! :3 (sem tempo para comentar! Lendo antes da festa de Natal. Feliz Natal, afinal!)

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