sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Indo embora pela segunda vez

Escrevo isso do ônibus que me leva para longe de São Luís, em direção à Caxias.
São cerca de 19:30, e, por culpa minha, meu celular já apitou a bateria fraca pela primeira vez. Já até me vejo, morrendo de tédio,  num ônibus que insiste em me atrapalhar ao escrever.
Devo chegar à uma da manhã, mas, agora, me preocupo só com Threshold dizendo que está em transe, que eu possuo toda a sua atenção, a como sua mente fica livremente na jornada da fez parte o tempo todo.
Não da para ver nada pela janela, então o máximo que posso dizer da viagem é que está desconfortável. A moça da minha frente achou apropriado esmagar as minhas pernans, e todas as luzes se foram, exceto a minha, sob qual escrevo numa agenda de 2010.
Enquanto o ônibus bagunça a minha já bagunçada caligrafia, penso nas pessoas que cheguei a ver, e nas que não tive chance de encontrar - desculpa, Igor. Amy me conta que as lágrimas dela secam sozinhas, e, caramba, eu sei disso.
Vi Débora, minha irmã, e até acho que fiquei com um pouco de saudade dela, mas eu sou casca-grossa rsrs
Escrever numa agenda é um saco. 14 de agosto foi sábado e divide a página com o dia 15.
Penso nos meus amigos, nas pessoas que fazem o dia-a-dia suportável.
Não pela primeira vez, penso que tenho os melhores amigos do mundo. Leroy me pergunta se eu estou me divertindo, com meus amigos e meu vinho francês.
Sim, me diverti.
Não foi exatamente como eu pensei que seria, mas é sempre melhor quando não é, não?
Amy me diz que eu tenho de contar para o meu namorado, quando ele estiver por aí, para ele comprar a própria erva e não gastar toda a dela.
Falando nisso, essas pessoas me deram suporte quando eu assumi a minha homossexualidade, e eu tenho uma dívida eterna com elas.
De novo, penso que tenho os melhores amigos do mundo.
Threshold me pergunta se eu estou preso na corrente de ar, perdido na névoa, se consigo ver algo pelo vidro.
Posso sim, graças a eles.
Pedro, Igor, João, Danilo, Hannah, André, Luís, Maria Thereza, Yuri, Guilherme, Gustavo, Helena, Aline e Carol, sem ordem de importância.
Amy me diz que me disse que ela problema, que eu já sabia que ela não prestava.
Não há honra maior no mundo do que ter vocês como amigos.
Muito Obrigado.

"I return a stronger man,
Stronger than the one you knew"

18 de Julho de 2012, lugar nenhum

sábado, 21 de julho de 2012

The Faces

It wasn't subtle, nor was it swift.
I was at home, reading.
Then there were the faces.
Faces on the wall, breathing in, and out, pulsing, alive, warm, cold and dead.

Foul breath coming from its many mouths, slowly creeping its way into the room.
I could not believe what my eyes beheld, though their horrible forms were, oh, so real.

The faces stood like a single creature, proud as a stallion, subtle as a rattlesnake.
As it stood still, it almost seemed to vanish into thin air.
Were it not for the dangerous and mischievous presence in the room, it would be undetectable.
I did not, however, move.
The thing on the walls - but that's an inaccurate way of describing the creature that stared at me with its thousand eyes - started humming and dancing ever slowly, then faster, and faster, and faster, the humming soon growing into full scream - screech -, the foul breath - that did not, in fact, come from its mouths, but from the room itself - was now the only air around.
There was no air to breathe.
I tried running, but the room spun so rapidly I would not dare to leave my spot.
Then all there was left for me was screaming hopelessly, and wait for the end.
But I couldn't.
The foul air that invaded my lungs would not go out. I could not breathe. I could not scream. I would choke with a full chest.
Then I understood.
The creature came to me - or was sent to me - to eat my soul, and make me one of the faces.
At the peek of its screeching and dancing, one of the faces came to me, stretching itself from the wall, stopping just as it became face-to-face to me.
"I shall devour thee", the face whispered in an ominous tone, "Thou shalt be forever trapped inside me, thou shalt never leave.
"Thou shalt never be free".
To this day I can't say for sure what possessed me to take such an action, but I did.
With the last shred of strength I had in me, I pulled my leg up and kicked the thing in the outstretched face. The creature shrieked, in complete disbelief.
The whole spinning-dance came to a sudden halt, and a breeze of fresh air cleaned my lungs, and I felt a strange force in me, a renewed will to live.
I stood up and said, as loudly as I could, "You will not have me now, nor will you ever have".
It looked at me and retracted, back in the wall.
"Leave me", I said, now not so strong as before.
And it left.
But the thing left with me a vengeful note.
A mask, blank, in the shape of and expression-less face, a warning.
I now can't sleep.
I've sold my house and bought an apartment in the city, because I couldn't sleep there.
I can't sleep here either.
I thought it was the mask, so I burnt it.
Didn't work.
I can barely work. I can barely live.
Everywhere I go, there are faces, watching, waiting.
It's coming to get me, I know this.
I just hope someone finds this and believes me.
I just hope I'm not insane.

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Eu tenho dois posts preparados para o blog.
Um deles eu queria ter postado sexta-feira, mas eu acho que só vou poder postar quando eu chegar da viagem (por ele estar anotado numa agenda e o único lugar que eu posso usar a internet aqui - em Luís Correia, praia, argh - é numa barraca na praia - cujo inconspícuo nome é "Barraca da Praia").
Bem, segue em sequência (se der para eu digitar), um conto que está anotado numa série de notas no celular, o que me permite postar aqui sem ser notado.
Vejo vocês em breve (brevíssimo).

terça-feira, 17 de julho de 2012

O poeta

Naquela cidade,
Naquela rua,
Naquela casa,
Naquele quarto,
Naquela cadeira,
Senta um poeta
Escreve, escreve,
Ninguém lê, mas escreve
Escreve por escrever
Tira os tormentos do coração
Cura a alma e afasta os maus pensamentos
- talvez até cure a dor-de-cotovelo
Naquela mesa,
Papéis
Ora, papéis!
Muitos, jogados
Frases de amor
Frases de ódio
Papéis!
Palavras mudas em constante mudança
Histórias inacabadas
No coração de um poeta
Moram todas as desgraças do mundo
E todas as belezas também.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Aquele dia

Por incrível que pareça, os dias começam a se empilhar, um em cima do outro.
Um dia desses pensei que fosse quarta - e não era quarta? Não sei mais.
Só sei que, naquele dia, era como se eu tivesse recebido uma nova carga depois de uma longa temporada usando a mesma cansada e velha bateria recarregável.
Dava para o gasto? Talvez, nem sempre.
Na rua, descia uma visão tão estranha que, se pudesse ficar o dia inteiro analisando, ainda assim deixaria um quê de mistério.
Há um charme na dúvida, um charme na ausência de certeza, algo ao mesmo tempo lindo e perigoso, horrível e maravilhoso.
Foi como me senti.
Passou por mim como quem segue seu caminho, mas eu sei que não foi verdade - pelo menos gosto de pensar que não foi.
Foi tomado pelo medo, metade sim, metade não, num sonho meio louco de procedência duvidosa. E não são todos assim?
Tive medo.
Mas mais medo por deixar a visão fugir, ir embora, desaparecer, do que da própria figura.
Virei-me.
"Sabe dizer que horas são?", perguntei, mas nem certeza de que falei a frase inteira tenho.
Talvez, vendo minha mímica de relógio invisível, respondeu: "Umas quatro da tarde".
E sorriu.
Não era um sorriso perfeito, não, de longe.
Era um sorriso real.
E eu poderia passar eternidades banhando naquele sorriso.
Eu sorri de volta - que mais poderia fazer?
E foi embora.
Não me culpo por não ter feito nada.
Às vezes fantasio um pedido, "Vamos tomar um café?", talvez, mas sempre que penso nisso lembro das minhas pernas molengas e do meu coração batendo rápido, e da minha completa falta de palavras.
Lembro da meu completo e absoluto vazio de mente, nunca sem saber o que dizer.
Mas eu sempre vou guardar aquele pedaço de conversa comigo.
Sempre vou lembrar do dia em que vi o amor da minha vida passar, e só conseguir pedir as horas para ele.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Laura, as covas, os mortos e os fogos

No meu sonho, eu estou correndo em meio à névoa, perdida na escuridão.
Nele, não há nem chão, nem céu, nem nada.
Só há aquela névoa e o escuro.
A tão-presente escuridão.
Eu tropeço em algo e caio. Eu não caio no chão. Eu caio. E é cair que me mata.
Eu estou caindo, ainda; minha mente grita que o chão já deveria haver aparecido, que isso não faz o menor sentido, que uma queda não duraria tanto, que...
Eu aterrisso com um estrondo no chão duro de terra. Pela primeira vez no sonho, eu posso ver alguma coisa, e a primeira coisa que eu noto é onde eu estou.
É um buraco escavado retangularmente na terra, nem muito fundo, nem muito raso.
Eu vejo algo de relance, um brilho e uma sombra, algo de vivo naquela mórbida paisagem, e eu sei bem onde estou, pois já estive aqui antes.
É uma cova. E aquele é o coveiro, e ele vai me enterrar viva, e eu vou ficar para sempre sozinha nas frias entranhas da terra.
A primeira pá de terra cai do céu como um ataque aéreo na segunda guerra mundial.
A segunda, a terceira, a quarta, a quinta, e eu estou lá, deitada no chão, até que decido me levantar e sair daquele túmulo, e começo a escalar as paredes de terra da minha prisão.
Quando finalmente chego na surperfície, o coveiro já parou de tapar a cova com areia, e está olhando para mim com olhos frios e úmidos.
Ele era um homenzinho encurvado, baixo, um pouco gordo, mortificamente branco, como os mortos que ele enterra todo dia.
Ele diz alguma coisa incompreensível, aquele ar rançoso e arrastado naquela boca enegrecida. Eu não vi nenhum dente lá. Também não acho que houvesse. Depois volta a tapar o buraco, apesar de já não haver nada alem da névoa lá.
Eu começo a correr de novo, mas, dessa vez, eu sei onde estou. É um cemitério, e eu tento achar o portão de entrada, perdida na escuridão - mas a idéia de voltar e perguntar ao coveiro tanto me assusta quanto me enoja. Eu entro numa ala cheia de túmulos antigos, e me vejo cercada por todas aquelas cruzes e flores, e anjos, e epitáfios que nem sei para onde olhar.
Eu olho para um buraco na terra. Dentro dele, um caixão destruído, sem cadáver.
Eu me pergunto se o coveiro andou enterrando algum outro vivo por aqui, mas eu acho que não. Eu  vejo e tenho certeza.
Corro.
Minha sombra se estende pelo chão como se se arrastasse no mesmo passo que os mortos dali.
Os mortos que saem à noite.
Os mortos que saem à morte.
Eu corro. Por dimensões irreais. Pesadelos incontidos.
Corro, e, por mais que eu corra, não chego em lugar nenhum.
A voz do coveiro-caveira - por que eu pensei nisso? - me chega pelas costas, escala pelos ombros e lambe os ouvidos, putrefata.
"E que mais adianta correr.
"Que a história restaura de uma vez.
"E o grito suave da meia-noite,
"Ergue-se como todos os mortos, os corpos, e os fogos.
"Ergue-te"
Ergo-me e abro os olhos.
Os fogos estão lindos este ano.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Epitaph

i
the night follows - sleepless
the wind blew - sightless
clumsily, as i cross the door
regret the vanity - "oh, no!"
abstain from answers - wordless
calling out the dead - voiceless
merely, as i kiss the floor
taste the blood - let us flow
clench my teeth - worthless
lie awake forever - ceaseless

ii
to live and not to live
to die and never die
to face and run away
to stand and fall apart
let it be a warning to all
this epitaph of mediocrity

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Simples assim

Peguei-me pensando de novo, nesses últimos dias. Meio melancólico, talvez, mas pensando mesmo assim.
Não é como antes, felizmente.
Sinto algo novo... saudade?
Saudade genuína?
Talvez. Não saberia dizer.
Talvez seja algo vindo daquela minha incurável busca por um preenchimento de vazio, que uma vez esteve cheio de pessoas, de amizade, companheirismo, e agora eu só tenho solidão.
Aos poucos leitores do blog, vocês me conhecem, não é? Acho que, se vocês me leem, é porque, no mínimo, se importam comigo... Onde estão vocês?
O que acontece é o que já aconteceu tantas vezes, mas diferente, dessa vez.
Desde que eu assumi como gay - primeira vez que menciono isso aqui, não é? -, eu venho sido abatido por um sentimento esmagador e completamente implacável de que eu nunca vou encontrar ninguém que goste de mim, ou alguém que sobreviva aos meus mil e um parâmetros - mea culpa, inteiramente, eu sei disso, mas, fazer o quê? Se não fosse assim, certamente eu seria uma pessoa completamente diferente.
Preciso que alguém me diga que isso não é verdade... Que existe alguém por aí com meu nome escrito nas costas, sei lá, alguém que tenha interesse não necessariamente no que me interessa, mas que tenha paixão por isso, e que adore conhecer mais do que somente o mínimo, o pouco.
É demais?
Aí eu me olho no espelho e sinto aquela força crescente e de tanta aflição tomar conta de mim, e eu perco a vontade de fazer as coisas.
Não pense que eu estou pensando "ah, todos os meus amigos me abandonaram", não, não.
Se alguém abandonou alguma coisa fui eu.
Mea culpa, de novo.
Eu não sei... Sonhei em dar aulas de Inglês, em ficar contente aqui em Teresina, em fazer novos amigos - com minhas recém-adquiridas habilidades sociais (Igor que o diga!).
Fui muito infantil no meu pensamento.
Talvez...
Talvez não interesse aonde você vá.
Você leva seus problemas na bagagem.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Monólogo -

Vês, agora?
Estava bem aqui
O tempo todo.
Vês o sangue?
Ainda jorra
Mesmo depois de morto.
Vês seus braços?
Tão tensos,
Como num último esforço.
Vês as lágrimas?
Pois cada uma é um pedaço da alma
Pelo ralo.
Vês seu semblante arrasado?
Mais desfigurado pela dor
Que pelos ferimentos.
Vês seus pés descalços?
Como se soubesse
Que lhe roubariam os sapatos.
Vês-te a ti mesmo?
Fazes bem
Muitos são cegos.

A Vista da Janela

Minha respiração não muda.
É como se eu estivesse morto e não morto.
É como se...
AAAH!
Grito. somente para sentir meus mudos gritos morrerem naquele vazio.
"That is not what I meant at all.
That is not it, at all"
Ouço uma voz - minha voz? Não sei mais.
É o meu pai, meu irmão, meu sangue, minha alma.
Eu não sei mais.
Meus olhos estão fechados?
Abertos?
Pergunto, tenho olhos?
Estendo mãos invisíveis ao meu mudo rosto sem cor.
"That is not it, at all"
Acho que sinto, falanges geladas.
Vasculhando minha face insensata, grito, grito.
Afundo mais e mais naquela escuridão multi-cor, vermelho-sangue, laranja-vivo.
Afogo-me sem respirar.
"Not what I meant"
Acordo.
"At all"
Olho pela janela do meu quarto. Dia.
Apenas outra quarta-feira.

sexta-feira, 30 de março de 2012

Como o céu de outono

Então era verdade.
Vê-la ali, morta, seca, murcha, a fazia chorar muito.
Mais do que quando seu pai morrera? Não sabia dizer.
Talvez isso já fosse uma resposta em si só.
"Clara está morta", pensou, as palavras estranhamente vazias, anunciando friamente a tragédia.
"Bem, pelo menos você pode ir procurar um marido...", disse sua mãe, "Agora que essa aí morreu".
Soraia olha a mãe nos olhos, sentindo um ódio que jamais sentira por ela. Ela já a tinha odiado antes, mas naquela hora...
Ela chora.


"Você vai guardar tudo isso?"
O apartamento cheio de objetos pessoais de Clara.
Fotos, móveis, livros - muitos, Clara adorava ler -, filmes, roupas.
Sonhos.
"Não sei...", responde.
"Soraia..."
Miguel se aproxima e tenta abraçá-la, mas ela o evita.
Ele toma distância.
Ela começa a chorar e ele não sabe o que fazer.
Se senta no chão acarpetado e olha para ela, olhar triste.
A campainha toca. Miguel atende e vê Susana, chorosa.
Ele queria beijá-la, mas ela queria um abraço dele.
Susana era irmã de Clara, e casada com Miguel.
Ela o abraça e vai correndo até Soraia, sentada no sofá.
As duas choram abraçadas enquanto Miguel as observa, ele mesmo querendo um abraço.


Soraia fez café.
Tinha açúcar demais, mas nenhum deles se importou.
Miguel olha e vê dois fios ruivos na mesa de granito.
Não era a cor original dela, mas era a mais bonita.
"Ela nunca exagerava o açúcar", começa Susana.
"Duas colheres e meia", completa Soraia.
Eles tomam um gole simultâneo do café, pensando ainda nas duas colheres e meia.
"Lembram de quando nós fomos ao parque, e ela se perdeu nas cerejeiras?", pergunta Miguel.
"Ela disse que queria voltar, mas estava tudo tão bonito que ela simplesmente decidiu andar até o rio", lembra Soraia.
"E chamou a gente para lá e improvisamos um piquenique lá mesmo...", Susana diz, "Eu trouxe pão, queijo, presunto, e Coca-cola".
Eles param o café e olham para os fios de cabelo, como se eles fossem parte da conversa.
"Ela estava indo para lá", diz Soraia.
"Estava?", Miguel não sabia disso.
Sabia das circunstâncias, lógico.
Ela estava na calçada, passeando, quando uma mulher perdeu o controle e a atropelou. Ela nunca soube que fora atingida.
Ainda tinha um longo processo pela frente.
Audições. Julgamentos. Acordos.
Mas isso estava longe.
Clara estava morta, e dinheiro nenhum a traria de volta.


"Acho que devemos ir até lá", sugere Miguel.
"Aonde", pergunta Soraia.
"Ao parque, em memória dela"
E foram.
Andaram até a beira do rio e sentaram lá.
Comeram sanduíches de queijo, presunto com Coca-cola, enquanto viam o sol descer sob as róseas copas das árvores e o céu adquirir um tom vermelho intenso.
Vermelho como os cabelos de Clara.

sábado, 24 de março de 2012

A Guitarra

Não era a primeira vez que via aquilo.
Músico bem-sucedido, famoso, drogado, entra em depressão, se mata - ou morre afogado no próprio vômito, como acontecera em outras vezes.
O cadáver jazia na frente de um hotel à beira-mar, donde saltara em direção à própria morte, num ímpeto regado à uísque misturado com cerveja.
Não perdeu muito tempo fazendo as preliminares do caso - os jornalistas chegariam logo, logo e viraria um verdadeiro inferno fazer o trabalho para o qual era pago direito -, mandando seu pessoal tirar as fotos logo, enquanto ele dava uma olhada rápida no local da queda.
"Sim, sim, suicídio, com certeza", concluiu, olhando para a sacada do quarto aonde estava hospedado.
Ele olha em volta de novo, procurando algum subalterno livre, até encontrar um.
"Você!", comanda.
"Eu?", diz o outro, e depois, corrigindo, "Sim, senhor".
"Lide com toda essa besteira técnica por mim. Eu vou dar uma olhada no quarto da vítima, procurar por sinais de luta, mas esse caso já está quase fechado".
"Sim, senhor!", responde ele, diligentemente.
"Se você conseguir agilizar o processo, talvez fechemos tudo antes da mídia chegar em peso", diz o detetive, logo percebendo que aquilo não aconteceria: já havia um pequeno grupo de pessoas em volta da faixa de "não ultrapasse" da polícia, celulares em punho, ligando, tirando fotos, e divulgando na internet.
Detetive Fortes não perdeu tempo e foi logo à recepção do hotel, aonde encontrou mais uma pequena multidão de fãs querendo saber o número do quarto do morto.
"Saiam daqui, vocês estão atrapalhando o serviço da polícia, saiam daqui e me deixem fazer o meu trabalho!", gritou, usando o seu tom de voz mais autoritário, geralmente só reservado a policiais incompetentes e preguiçosos.
Aquela gente toda lhe dava nos nervos.
"Vagabundos...", pensou, enquanto pegava o número com a recepcionista - assustada, a moça. Poderia ter-lhe pedido para ir ela mesma cuidar do cadáver que ela aceitaria, no estado de choque que estava. Fez uma nota mental de pedir para a ambulância levá-la junto do músico morto.
Também fez uma nota mental para se lembrar de pedir para que ela viesse depor sobre o caso, pois fora ela quem encontrou o cadáver.
Pegou o número do quarto, e seguiu para o elevador, dando uma última olhada na expressão perplexa da asiática.
Antigamente ele sentiria pena dela, e um pouco de raiva da "vítima".
"Um vagabundo desses se mata e traumatiza um inocente para sempre", pensaria.
Hoje não.
Lugar errado, hora errada.

Era o 803.
Abriu a porta, de arma em punho, ouvindo, ao fundo, os carros de redes de TV chegando ao fundo, com algumas outras viaturas.
"Aqueles idiotas chamaram reforços", pensou, "Mal conseguem conter meia dúzia de jornalistas agora". Como eles lidariam com a chuva de perguntas e entrevistas que viria depois se já não eram capazes de fazer isso agora?
Tirou aquilo da mente, concentrando-se em entrar no quarto escuro.
Andou alguns passos e acendeu a luz.
Ninguém ali. Baixou a arma.
Garrafas de vodca espalhadas no chão, uma cujo conteúdo tinha caído todo no carpete, deixando o quarto com um cheiro pungente de álcool.
Pegou umas das garrafas vazias do chão, olhando o rótulo.
"Vodca barata", pensou, "Alguém aqui não ligava para a bebida, só queria ficar bêbado".
Além da bebida de má-qualidade no quarto de um milionário, nada ali era fora do comum.
Não tinha sinal de festa.
Os funcionários diriam, mais tarde, que só tinham visto ele entrar sozinho, junto com a bebida que ele consumiu - sozinho, presumivelmente.
Havia apenas duas coisas que saltavam a vista no quarto - mais uma vez, além de todo o álcool jogado no chão. A porta da sacada aberta, donde ele teria saltado, uma pilha de papéis na escrivaninha - alguns tinham voado com o vento que vinha da sacada.
Fortes foi direto à pequena pilha, recolhendo do chão o que havia dela e pondo tudo numa única pilha organizada.
Ele lê a primeira frase.
"Eu não era nada antes daquele dia, só mais um de vários", leu.
Aquilo era um bilhete suicida?
"Geralmente as pessoas deixam uma nota, um post-it, algo simples e sucinto", pensou.
Apesar de todo o seu treinamento, de todos os seus instintos policiais lhe dizendo o contrário, dizendo para que ele guardasse tudo numa sacola de evidências e fosse embora antes da maldita mídia chegar... Apesar de tudo aquilo, ele se sentou na cadeira da escrivaninha, talvez sendo chamado por algo, com um pressentimento forte de que tinha alguma coisa de importante naquele relato, uma história que literalmente não podia esperar mais um segundo antes de ser contada.
Apesar de tudo aquilo, ele leu a primeira frase de novo.
E a segunda.
A terceira.
Nunca notando o silêncio do quarto.
Nunca notando o silêncio.
Só sua voz, a ler aquela história.

"Eu não era nada antes daquele dia, só mais um de vários.
"E nem nisso eu era bom.
"Eu ia perdendo cabelo, trabalhando de segunda a sexta num escritório claustrofóbico. O sonho de ver as marquises coloridas de 'Henrique Sreda - Ao vivo' ficando cada vez mais amarelado.
"Minha mulher tinha me deixado.
"Minha filha me odiava.
"Quando as duas me deixaram, ela disse que eu só ligava para mim mesmo e meus sonhos idiotas de ser astro do rock nos anos oitenta. Ela estava certa. Estavam todos certos. Eu só ligava para mim mesmo. Nem mesmo amigos eu tinha.
"Meu amigos deixaram deixaram o nosso sonho de sermos famosos por sonhos mais construtivos. Daí eles se casaram. Tiveram filhos. Compraram casas em condomínios fechado. Conheceram casais de condomínios fechados. Começaram a sair com os casais. Eu fiquei aqui, sozinho. Meus sonhos morrendo e meu cabelo caindo.
"Só me restava a minha guitarra do coração.
"Não me leve a mal, era uma guitarra vagabunda. Antiga, toda arranhada, cheia de remendos e marcas de adesivos mal-tirados. Mas era a minha guitarra. Minha memória de tempos mais jovens e felizes.
"Naquela noite, eu saí de casa e comprei a vodca mais barata que tinha no supermercado - era o que eu podia comprar,  com meu trabalho - e saí andando, guitarra em mãos.
"Andei, bebi, andei, bebi. Até cair sentado, numa encruzilhada, sozinho, sabe-se-la que horas da manhã.
"Resolvi tocar um pouco da guitarra, mesmo sem amplificadores. Não dava para ouvir direito os sons, mas eu imaginei os sons, ouvindo minha tristeza ecoar na minha cabeça.
"De repente, surgiu um homem alto na minha frente. Eu quase dei um grito de susto, mas ele fez um gesto para que eu não me preocupasse. 'Você me deixa tocar um pouquinho também?', ele perguntou, ao que eu disse, 'Mas não tem amplificadores aqui'.
"'Eu não preciso de amplificadores'.
"E tocou a guitarra. E eu pude ouvir os sons perfeitamente. Era perfeito.
"O homem sem nome parou alguns minutos depois e me olhou nos olhos. 'Agora você sabe', disse, e foi embora. Eu fiquei olhando aquela figura sombria desaparecer numa das ruas sem saber o que dizer, segurando a minha guitarra.
"Eu vi o demônio numa encruzilhada e vendi minha alma.
"Fui para casa, estranhamente sóbrio depois de tanta bebida, sem saber o que fazer com aquela guitarra. Se eu a jogasse fora... Se ficasse com ela... Não sabia o que fazer.
"Cheguei em casa e senti a guitarra nas minha mãos. Estava mais pesada, com uma espécie de calor. Coloquei ela no meu velho amplificador e toquei.
"Era como mágica, cara, mágica. Eu não precisava nem afinar, era tudo perfeito. O som saía com uma distinção que a de antes não fazia nem no tempo que ela era nova.
"Comecei a escrever músicas naquela mesma noite. Cheguei a pensar, 'Amanhã é quarta, e eu vou dormir muito tarde!', mas daí a ficha caiu: nunca mais voltaria para o trabalho.
"No dia seguinte eu fui numa gravadora, que logo me arranjou com uma banda que precisava de um guitarrista/cantor, e pronto, estava formada a banda."
O detetive parou naquele momento. Lera a história até ali, sem parar, num ímpeto só, mas toda aquela história de diabo na encruzilhada era simplesmente besteira.
Ou era?
Não tinha como saber sem ler.
"O resto da história todo mundo conhece. Podem ler em qualquer jornal amanhã.
"O que ninguém sabe são os sonhos.
"Desde que peguei a guitarra, eu venho tendo sonhos horríveis, mais e mais pesados, onde o diabo vem e me leva para o inferno, eu sou arrastado e torturado para sempre naquele lugar...
"E as sombras - OH, DEUS, as sombras... As vozes, os passos, a sensação de estar sendo vigiado, a perseguição, as perguntas, os shows, os fãs, tudo, tudo, tudo... Eu vivia com um medo horrível de morrer.
"Tentei contar aquilo para os meus colegas de banda, mas eles só acharam que eu estava louco. LOUCO! Vê se pode? Eu, louco..."
A letra dele treme, e tem algumas gotas de vodca ali, mas Fortes continua a ler sem nem percebê-las.
"Com o tempo, eles ficaram com medo de mim, e me tiraram da banda, mas eles prometeram não contar a história da guitarra. Depois disso só foi para baixo. Tentei carreira solo, tentei virar compositor, nada dava certo. Parei de tocar.
"Semana passada eu o vi de novo. Estava dentro da minha casa, me olhando dormir. Cobrando. Dizendo, sem falar nada, que ele tinha me dado um dom, e eu tinha que usá-lo, senão ele cobraria mais cedo.
"Tentei argumentar, mas ele se foi.
"Eu fugi. Mas não dava para fugir.
"Peguei esse quarto do hotel, comprei papel, caneta, muita vodca, minha guitarra, e um crucifixo.
"Enquanto eu escrevia..."
Ele parou de ler, pois já não era necessário.
Podia ver a cena toda com clareza em sua mente.
Ele termina de escrever seu relato, bêbado, se levanta, deixa a garrafa de vodca barata cair no chão, quase cheia.
Pega a guitarra e o crucifixo, e, apesar de ninguém ter ouvido nada, ele sabe que Henrique destrói a guitarra na parede e a joga da sacada.
Daí ele agarra o crucifixo - talvez como se pedisse perdão - e se joga.
Mas ele não lembrava de ter visto o crucifixo com ele, muito menos a guitarra.
Ele olha em volta, e vê a guitarra, parada, intacta, encostada na parede.
Ele poderia estar errado - era pura especulação -, mas ele tinha certeza de que a guitarra fora destruída pelo dono.
Ele se levanta, lentamente, e a pega nos braços.
Não se pergunta porque, por exemplo, a mídia ainda não chegou.
Ou os reforços.
Ou quanto tempo se passou desde que ele sentou para ler o relato do suicida.
Ele pega a guitarra nos braços e sente o peso dela, o formato dela, como ela se acomodava bem aos seus braços.
A mão esquerda dele vai até as cordas, e tocam, de uma única passagem, todas as cordas.
O som que vinha era ao mesmo tempo horrível e fascinante.
Era um som que poderia dominar muitos.
De repente, ele se percebe preparando uma nota.
Um acorde.
Toca, toca.
Toca sem um amplificador.
A música ecoando no vazio de sua mente.


- - - - - -


Esse conto foi baseado parcialmente na história de Robert Johnson, que dizem ter encontrado o demônio à meia-noite numa encruzilhada e aprendido o Blues a partir dele.
Esse conto também foi uma espécie de desafio que André me passou, espero que tenham gostado!

terça-feira, 20 de março de 2012

Às Vezes

Às vezes eu paro
penso, penso, penso
Às vezes eu minto
não minto, não minto
Às vezes eu vou
além dos meus limites
Quebro clichês
faço clichês
Vejo filmes
Às vezes rio
Às vezes choro
(mais choro que rio)
Às vezes não sei nada
Às vezes só um pouquinho
Às vezes eu escrevo
Às vezes eu leio
("que besteira!")
Às vezes eu...
Às vezes eu vivo

Mais fácil duvidar...

Não é como um lugar
Esquecido, desabitado, vazio
Não é como um milagre
Duvidoso, torcido, mentido
Não é como um cartaz
Exposto, lido, apagado
Não é uma mera memória
Desbotada, arranhada, guardada
É mais que um sentimento
Fugaz, tolo, confuso
É amor

sábado, 17 de março de 2012

The Wind

She felt the gushing wind coming through the window.
It wasn't yet then when she figured just how lost she was.
Then she felt what could only be described as a push. She fell.
And it was dark. Everywhere.
"Pitch dark", she thought, as she touched the floor - was it the ceiling?
She realised she couldn't quite feel whatever marks were on the floor.
She didn't feel the lines between the tiles, nor the little cratters on them - a result of years of walking around and pushing furniture, realining, renovating, rebreathing the air as a different air, so vividly feeling life flowing through her veins every time she breathed.
The floor was perfectly plane.
Perfectly plane.
Oddly plane.
Was it the ceiling after all?
She couldn't tell.
So dark it almost felt liquid. 
Up and down, right and left, all the points in compass compressed into the same pointless direction: into the nothingness.
She got up - down, left, right -, and started walking aimlessly, trying to remember the room she was in, but she found nothing of the study she once was, looking for a book on the shelves.
She walked in what she thought was a straight line through the darkness, never really knowing where she was, asking herself where she could be.
"Hey!", she cried, "Someone there?"
Or she thought she did, for she didn't hear any sound coming through her throat.
Indeed, now that she thought about that, she couldn't even feel it at all.
"Someone, please! Please! Please help!", again, no sound.
"Please!"
"Please!"
"Please..."
Her pleas for help went unheard, what some would compare to a tree falling in the woods with no one there to listen to its fall: does it make a sound?
It didn't, not for her. She couldn't hear a thing.
She ran.
Ran, ran, ran, but she couldn't help but feel like sinking.
She stooped down to find the once-plane floor completely wet.
Before she noticed, she had sank all the way to the waist.
She freaked out.
She screamed, screamed, screamed, the wind rushing so powerfully, coming from all directions to inside her.
She sank.


She couldn't breath.
She wasn't breathing.
The air was not coming in. The air was not coming out.
She couldn't breath.


She remembered climbing the ladder.
Reaching out for the book up high.
The window was open.
The ladder was tilted.
The wind came.
She fell.


A single tombstone, left out in the darkness, the only thing in kilometres away.
The only thing she knew.
"In loving memory of our child".
The wind came once again.
Lights, chimes, oblivion.
She was dead. 

domingo, 5 de fevereiro de 2012

A coda de uma vida oca.

Ele senta na cama, sem olhar para nenhum lado.
Ele senta e olha para o chão, cinza, acarpetado.
A mulher ainda dorme, e rola para o espaço que ele antes ocupava.
Ele vira o pescoço e olha o rosto dela, olhos cobertos: ainda era noite para ela.
Vagabunda.
Ele se levanta, mecanicamente.
Banho.
Roupas.
Café.
Dentes.
Mecanicamente.
Arrumado, ele pega o terno, e olha a mulher sentada, tomando café.
Ele a ama.
Vagabunda.


Trabalho.
Os colegas dizem "oi", "oi".
"Bom dia".
Entra no seu cubículo e analisa a pilha de papéis sentada do lado do computador.
Ele olha folha a folha a pilha, lendo as palavras impressas em preto no branco.
Revisar o relatório disso, ampliar as fontes daquilo, editar.
Memorandos.
Não haverá mais pausa para o café devido à falta de produtividade.
Demissões no setor dele.
Possível rebaixamento de salários - a ser debatido pelo setor de RH.
Ele olha para aqueles papéis e sente algo dentro dele.
Algo clicando, pulsando, ameaçando explodir.
Ele olha para a pilha de papéis e vê nela tudo que tem de errado na sua vida.
Todos os seus demônios.
Alguém passa rápido,sem nem olhar para o lado, e joga uma nova folha de papel na pilha de folhas de papel.
Uma única folha de papel, repousando desastrosamente numa pilha de erros, erros, e mais erros.
Algo explode dentro dele, queima, quebra, e uma onda de ódio inesgotável bate na parede de seu corpo.
Sua expressão não muda.
Ele vê a pilha de papéis e não faz nada.
Mas por dentro ele queima, por dentro ele grita, grita, grita.
Ele vê a pilha de papéis de novo, e puxa qualquer um.
Ele tem trabalho a fazer.


Em casa, sem jantar.
Ela não está.
Não tem ninguém naquele apartamento.
Mal tem ele mesmo.
Esquenta comida congelada no microondas.
Come sem vontade. 
Ela ainda não está.
Ela está com aquele amigo dela.
O garotão alto com quem ele a viu no estacionamento um dia.
Ela disse que ele era um amigo.
"Só um amigo".
Irmão de uma amiga.
Ela o trai.
Ele sabe disso.
Mas ele a ama.
Ela sabe disso.
Vagabunda.

Deita na cama e não consegue dormir.
Faz mais de um mês que não dorme direito.
Não consegue dormir.
Engoliu três pílulas e não consegue dormir.
Ela ainda não chegou.
Será que ainda...

Manhã seguinte, ele acorda e senta na cama.
Ela dorme do seu lado, olhos cobertos.
Ele se levanta, e abre a gaveta da mesinha ao seu lado.
Ele vê as pílulas rolando livremente na gaveta.
Tinha esquecido a tampa aberta.
Ele vê a arma na gaveta, sem uso.
Fecha a gaveta.
Banho.
Roupas.
Café.
Dentes.
Ela ainda dorme.
Ele se senta na cama e aponta a arma para ela.
Aponta bem no meio de seus olhos cobertos.
Vai atirar?
Não.
Ele a ama.
Vagabunda.
Ele a ama demais.
Olha para o cano vazio da arma, o cano escuro e vazio da arma.
Não deixa bilhetes.
Não tem amigos.
Nem o que dizer.
Olha para o cano vazio da arma e atira.
Atira e não o vê mais.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Para matar a saudade - um tédio profundo...

Eu estava relendo alguns dos meus textos - sim, aqueles mesmos, sobre quais ninguém quer saber -, e percebi que já faz algum tempo que eu não cavo no fundo da minha cabeça e procuro algo interessante - uma pérola do dia-a-dia, um pequeno comentário sobre o que vem acontecendo, quiçá até contar alguns dos meus sentimentos!
Vou começar com o mais simples, já que eu tenho que começar por algo, não é?
Na minha viagem à Teresina para fazer matrícula na UFPI, eu comprei um livro muito interessante numa Anchieta de lá - uma maravilha de dois andares e milhares de livros à minha disposição, com café e tudo -, chama-se "Kiki de Montparnasse".


Vou ser bem sincero: não sabia que se tratava de uma mulher de verdade quando comprei o livro.
Eu abri, e vi que, apesar de ter formato de livro, eram quadrinhos, e quadrinhos bastante bonitos, por sinal. Comecei a ler e a história me fascinou. Decidi ler só até o final do primeiro capítulo e ler o resto no ônibus na volta para casa.
O livro se mostrou excelente, e assustadoramente curto, para suas quatrocentas páginas de quadrinhos, e eu acho que ninguém jamais vai conseguir entender o que passou na minha cabeça quando eu percebi que a história só podia se tratar de um pessoa de verdade, foi uma experiência única, de fato.


E sim, ela era linda. Existem mais fotos que se podem achar na internet, mas elas são mais pesadas, pois ela costumava posar nua, tanto para pintores, quanto para escultores e fotógrafos. Aliás, tem uma foto muito bonita dela nua em frente a um espelho, pode-se ver nos arquivos de fotos da wikipédia, sugiro que procurem :)

Afora disso, eu tenho uma história muito tosca sobre mim mesmo agora, que envolve um ônibus lotado e um idiota chorando em cima de um livro - sim, eu choro lendo livros e vendo filmes, e não tenho vergonha de dizer, quem não chorou em Toy Story 3 não tem alma u.u

Mas essa foi só uma das coisas interessantes que me vêm acontecendo.
Ganhei um Samsung Galaxy 5, e agora jogo Angry Birds o tempo todo, e estou viciado, diga-se de passagem.
Mas eu estou meio triste. Deve ser o tédio.
Eu não tenho feito nada de substancial da minha vida além de sentar e esperar.
Todo dia é a mesma coisa.
De vez em quando, alguma ideia me atinge despreparado, e eu escrevo, mas eu nem tenho tido muitas boas ideias.
Estou com saudade do pessoal da escola, e de alguns amigos meus de outros tempos, apesar de falar com Pedro diariamente no msn.
Sei lá, queria ter aproveitado melhor meu tempo de escola, ano passado, ou pelo menos o final dele. Eu até convidei Igor para ver "Os Homens que não Amavam as Mulheres", comparar o filme à versão sueca ao livro rsrs
Teria sido legal, mas Igor está em Bacabal, sem previsões de vir a São Luís.
Well, eu posso mesmo me entediar até a morte, pelo visto, sem nada para fazer, nesse meu cantinho estranho.
Ah! Outra coisa!
Eu me convenci a parar de roer as unhas. Vamos ver se isso dura >.<

Acho que eu realmente tinha muita coisa a dizer, não é?
Bem, se você leu tudo até aqui, parabéns, o final é esse mesmo, como todos os finais que a vida tem.
Ele é cruel, abrupto, sem sentido, e estranhamente natural.
Perversamente natural.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

A Ilha Em Forma de Navio de Guerra

Hashima era bem o que ele esperava que fosse.
A ilha em forma de navio de guerra despontava no céu acinzentado, mostrando sua face esburacada, abandonada, em completo descaso.
Gunkanjima, a ilha em forma de navio de guerra, já tinha sido muito populosa. Foi lar de uma das maiores minas de carvão do Japão, e já chegou a ter uma das maiores concentrações populacionais com seus cinco mil habitantes.
Ele olha da ilha para seu bloco de notas.
Nele, já havia marcado todas as informações necessárias, a história resumida da ilha em poucas páginas num caderninho.
Lógico, a verdade não caberia naquele pequeno bloco. E ele queria a verdade.
Não que acreditasse em fantasmas, ou que achasse que a ilha fosse assombrada, ou que ainda acharia pessoas morando lá, ou qualquer coisa. Ele era um jornalista que procurava a verdade simplesmente pela verdade.
O homem que conduzia o barco (muito pequeno, quase um bote) era um homenzinho atarracado, um tailandês, supunha. Seu japonês era muito ruim, cheio de sotaque, mas tudo bem para ele. Desde que aquele homenzinho atarracado pudesse levá-lo até a ilha em segurança, e trazê-lo de volta no dia seguinte.
O plano era simples.
Chegaria pela manhã passaria o dia todo na ilha, vasculhando, tirando fotos, fazendo anotações, procurando algo digno de documentação. Quiçá um jornal antigo, um diário, livros, restos das muitas vidas que passaram naquele lugar.
Depois, no dia seguinte, o homem chegaria de barco no porto e o levaria de volta a Nagasaki, aonde encontraria o editor de uma revista importante, em que pretendia publicar suas descobertas, para mostrar-lhe sua proposta de reportagem. Se voltasse com material suficiente, talvez convencesse-o a publicar sua matéria, uma chance que não perderia por nada no mundo.
Satoshi era um jornalista japonês nos fins dos quarenta anos, divorciado, vivendo em um apartamento minúsculo em Tóquio, sem publicar nada desde seu divórcio, dez anos antes.
Mas você sabe que foi antes, não sabe? Foi por isso que sua mulher o largou.
Jogou aqueles pensamentos para longe, para aonde ele não pudesse ouvi-los.
Focou-se no mar.
Focou-se na canção mal-pronunciada que o remador tailandês entoava.
Focou-se no céu.
Focou-se na fome.
Focou-se...
O barco parou abruptamente, tirando Satoshi de suas reflexões internas levando-o a um outro nível completo de assombração.
Tão rápido quanto a ilha havia despontado do mar, haviam chegado nela.
O tailandês recusou-se a chegar perto da ilha, murmurando alguma tolice supersticiosa que ele simplesmente ignorou, aceitando as negações do homenzinho.
Desceu do barco carregando suas coisas - pouco além de uma mochila com comida, lanterna, saco de dormir, celular (sem sinal, naquele lugar), máquina fotográfica, um bloco de notas e uma caneta. Aquela caneta de ouro, de tinta recarregável, que ganhara do pai quando fizera 18 anos.
"Eu sei que é pouco, e que você merece mais", dissera-lhe, "Mas é muito importante que tenha essa caneta, filho, pois foi com ela que construí minha carreira". O pai fora um jornalista importante, que trabalhara num jornal de Tóquio relativamente influente por anos, até ter um ataque cardíaco e morrer tragicamente. Fazia vinte anos que o pai morrera, e Satoshi ainda sentia falta dele.
De qualquer forma, combinou com o tailandês - que, desconfiava, devia ser ilegal - o horário em que chegaria (bem cedo pela manhã, pouco depois do sol nascer).
Ficou ainda na praia, observando o barquinho desaparecer entre as águas antes de se virar e encarar de frente a carcaça da ilha.
Prédios por todo lado, ruas abandonadas. Pedaços de papel voando por aí, todos brancos e manchados pelo tempo, sem nada importante a acrescentar ao mundo exceto o fato de estarem todos mortos ali, e nada se fazia por lá havia anos.
Pegou a câmera pela alça e tirou uma foto da paisagem, pensando consigo mesmo que talvez tivesse realmente sido uma perda de tempo vir até aqui.
Todos disseram que eu estava louco, que seria perda de tempo e de dinheiro.
Continuou mesmo assim. Tinha sua carreira em jogo, senão sua própria vida.
Namu amida butsu, rezou, antes de seguir em frente.
Mais à frente haviam lojas, e ele parou um pouco para observar e tirar algumas fotos.
As lojas estavam vazias, logicamente, já que as pessoas agarraram o que puderam antes de fugir da ilha.
Fez uma nota mental de que, no meio de toda aquela bagunça, as pessoas acharam tempo para pegar cuecas novas e roubar vestidos.
Olhou mais um pouco.
Essa aqui era uma loja de sapatos, e ali na frente temos um restaurante. O que é aquilo? Um café?
Depois entraria numa delas para ver se achava algo de valor, algum registro escrito ou fotográfico do que acontecera ali.
ôSeguiu pela rua principal com o sol atrás de si, sentido ele se por minuto a minuto, sabendo que aquele tempo seria precioso.
Se quisesse se estabelecer, teria de fazê-lo antes que escurecesse, porque não tinha energia em parte alguma da ilha.
Quase que não notou quando pisou numa foto no chão.
Olhou para baixo e viu que a foto mostrava aquela mesma rua, num dia muito movimentado, talvez o primeiro dia da grande fuga que fez com que aquela ilha ficasse vazia.
Ela fora tirada de cima, da janela do prédio que estava à sua direita, e captava os movimentos apressados e exagerados das pessoas que fugiam.
Haviam japoneses e coreanos correndo de um lado para o outro. Crianças choravam, perdidas dos pais. Pessoas passavam sem nenhum escrúpulo, segurando quaisquer objetos que conseguissem arrancar das mãos dos aflitos donos das lojas.
Ele viu uma pessoa caída no chão.
Fora pisoteada e morta.
No meio de toda confusão, havia algo horrivelmente inumano no ar.
Melhor, havia algo humano demais.
Uma sensação palpável de medo e psicose, como se a fuga desesperada tivesse deixado a todos insanos.
Ele viu pessoas com ferimentos horríveis correndo, batendo, brigando, empurrando.
Viu sorrisos sangrentos de pessoas sem dentes.
Viu pessoas cujos olhos lembravam mais os de animais.
Guardou a foto no bolso, fazendo outra nota mental de procurar mais coisas no chão como aquela. Certamente haveria mais.
Com o sol já se pondo, e ele resolveu se virar e procurar o quarto donde aquela foto fora tirada.
Com esse objetivo em mão, pôs-se a empurrar as portas de madeira velha de um prédio de apartamentos.
Presumivelmente, aquelas eram as moradias dos coreanos durante a segunda guerra, então todos os quartos eram pequenos e mal-cheirosos, cheios de marcas nas paredes e no chão, um lugar onde muitos dividiam pouco, e em que mortes eram comuns e em massa.
Aqueles quartos, portanto, nunca pertenceram a ninguém, tampouco se conhecia a identidade da maior parte de seus habitantes. 
Como diria George Orwell, são despessoas, pensou, achando que a frase soava bem, e que seria uma boa ideia acrescentá-la no trabalho.
Depois de vinte minutos abrindo e fechando janelas, procurando a sala certa, achou aquela que tinha o ângulo perfeito da foto. Olhou no chão e viu que ele estava coberto de marcas de todo o tipo: de pés, de unhas, de tentativas de cravar no chão os acontecimentos de lá.
Ele olhou as paredes e viu símbolos incompreensíveis, mas então percebeu que ele simplesmente não conseguia ler coreano - especialmente aquelas palavras, tão trêmulas e desesperadas.
Abaixou-se e olhou debaixo da pobre cama de estrados.
Havia um pedaço de papel amassado, imprensado contra a parede, completamente dobrado.
Tirou-o com o maior cuidado e desdobrou-o.
Eram várias páginas de uma história escrita numa caligrafia comprimida, como se tivesse medo de acabar o papel - provavelmente tinha.
Aquele seria um documento importante. Mais importante ainda do que as fotos que tinha tirado - e a que tinha achado.
Resolver assentar-se naquele quarto, preparando-se para aquela leitura.
Abriu seu saco de dormir e acendeu uma lanterna, abrindo a primeira das páginas (eram cinco, frente e costa).
A história contava sobre um jovem médico coreano chamado Bae.
Escrevendo em japonês, Bae contava que havia sido capturado pelas forças japonesas em 1938, e fora levado num barco com mais duzentos outros coreanos para o Japão, de onde um grupo menor deles fora levado para aquela ilha para trabalhos forçados na mina de carvão.
"Achava que poderia escapar de qualquer lugar, mas perdi minha esperanças no momento em que vi a ilha em forma de navio de guerra", dizia.
A história continuava contando todos os maus tratos que ele havia sofrido, contando em detalhes as surras, as jornadas extensivas, a comida parca, ruim e gelada. Os aposentos apertados e superlotados.
"Peguei os papéis por aí, catando o lixo até achar algum que estivesse em branco. O carvão foi fácil, mas escrever nem tanto", contava, acrescentando que tinha de se esconder e escrever às cegas.
Satoshi passou horas lendo o relato de Bae, que destrinchava toda a sua história de dor, toda a sua saudade de casa, todo seu ódio pelo governo japonês, todo seu ódio cego contra si mesmo, contra os outros prisioneiros, contra a Coréia, contra tudo, contra nada.
Ele tinha ódio.
"Quando veio a bomba atômica, eu estava na mina, e escapei dos deslizamentos de terra por pouco, mas foi minha sorte, não estar exposto a ela.
"Mais de mil pessoas morreram naquele dia, e nenhum de nós foi o mesmo desde então".
Bae contou que permaneceu na ilha mesmo após a guerra pois não tinha aonde ir. Sua família provavelmente estava morta, e ele não tinha nenhum documento e nenhum dinheiro, por isso aceitou viver na ilha, após sua reconstrução, ganhando mal o suficiente para viver.
"E assim foi até o inferno começar", dizia.
Satoshi respirou fundo, preparando-se para a leitura.
"Por causa da nova demanda por petróleo, milhares de minas estavam fechando em todo país.
"Foi só uma questão de tempo para fecharem Hashima, apesar de haverem mais de cinco mil almas aqui", escreveu.
A debandada durou cinco dias cravados.
Em cinco dias, a ilha passou de super-populosa a abandonada.
Bae contava que muitos tinham morrido pisoteados, assassinados enquanto tentavam roubar uns dos outros.
Ele já estava no final do relato, quando ouviu um barulho vindo do lado de fora.
Satoshi se levantou e olhou pela janela.
A ilha estava completamente escura, numa noite sem lua e sem estrelas.
Ele pegou a lanterna e tentou procurar a fonte do barulho, mas só o que ele viu foi lixo e mais lixo.
Ouviu outro barulho, dessa vez de dentro do prédio, então resolveu descer e investigar.
Pegou a lanterna e os papéis, com a lanterna em mãos, e os papéis no bolso do casaco.
Desceu as escadas devagar, procurando por algo que fosse a fonte dos barulhos.
Apontou a lanterna para o chão e só que viu foi o de sempre.
De repente, ele começou a sentir-se observado, com olhos por todos os lados.
Correu até o andar térreo, e saiu para a rua, suando frio, apontando a lanterna para todos os lados, sem ver ninguém,
Por detrás dele, ouviu passos rápidos correndo, e virou-se na hora, mas só viu o relance de uma perna infantil num sapato azul, e não viu mais nada.
"Quem está aí?", gritou. "Eu vi você, não adianta tentar fingir que não!".
Ele está com muito frio e está aterrorizado.
Ele está com muito medo, e se sente desolado.
"QUEM ESTÁ AÍ?", berra, sem resposta.
Exceto que houve resposta, mas foi um raio forte que caiu num prédio centenas de metros adiante, iluminando tudo ao seu redor durante um único segundo.
Um segundo de luz, e já havia acabado, mas o que ele vira queimaria nas suas retinas para sempre.
Uma multidão de mortos encarava ele de frente, sem nenhuma expressão além da fria morte gelada e vazia. Cada um deles murmurando em silêncio histórias que ele podia ouvir claramente no ouvidos, mas que, no fundo, sabia que vinham da sua mente.
Aqueles mortos sussurravam nas sombras seu ódio, sussurravam palavras inaudíveis no vento, amaldiçoando tudo, matando tudo o que viam com aquele olhar cruel e tão horrivelmente despido de qualquer emoção.
Exceto o ódio.
Ele sentia o ódio, mas não era só ódio.
Era desespero.
Eram mortos esquecidos.
São despessoas, pensou, inutilmente.
Fileiras e fileiras de mortos sem nome, sem face, sem rumo nem norte. Mortos sem direito à própria morte.
E o segundo passou, mas e o terror que invadiu o coração de Satoshi ficou, e tomou conta do seu corpo, e ele começou a correr.
Corria no escuro sem direção, sem ver nada, sabendo que cedo ou tarde bateria numa parede e ficaria desacordado, e pouco ligando, desejando ficar desacordado, como um golpe de piedade, uma pequena benção naquele inferno recheado de desespero.
E Satoshi correu. Gritando a plenos pulmões sem nem saber que o fazia.
Então ele tropeça e cai, sentindo o peso do próprio corpo de maneira extremamente dolorosa.
Ao tropeçar, sua mente finalmente se desfaz do seu corpo.
Enquanto ele desliza para a terra da inconsciência, ele ouve uma voz estranhamente comum dizer nos seus ouvidos.
Namu amida butsu.


Satoshi acorda com os gritos mal-pronunciados do tailandês, com seu barquinho a uma cuidadosa distância da ilha.
Estava deitado na praia, com todos os músculos doloridos, sentindo um cansaço horrível.
Demorou ainda alguns segundos para que ele se lembrasse do que tinha acontecido na noite anterior, e, quando lembrou, foi como se estivesse vendo tudo de novo pela primeira vez.
Controlou-se a acenou de volta para o homenzinho, pensando nas suas coisas ainda no quarto.
Não iria lá nem por todo dinheiro do mundo.
No final, foi como lhe disseram: perda de dinheiro.
Teria que desmarcar o encontro.
Já no barco, ele resolve descansar, dando adeus à ilha.
Foca-se no mar.
Foca-se na canção mal-pronunciada que o tailandês entoava.
Foca-se no céu.
Foca-se na fome.
Foca-se...
Bae era budista?
Ele dá um salto com aquela realização, com tudo fazendo sentido na cabeça.
Bae viveu aqui.
Bae morreu aqui.
Bae tirou a foto e a jogou na multidão, esperando que alguém a encontrasse e percebesse os animais que eram.
Bae se jogou do prédio.
Bae morreu aqui.
Sentiu o bolso e viu que ainda tinha os papéis, e tirou eles do bolso, se xingando por não ter pegado a foto também, mas...
A foto estava no meio dos papéis, bem guardada.
Ele não lembrava de tê-la guardado, mas, se estava lá...
Você realmente acredita nisso?
Não, não acreditava.
De repente, ele percebeu o que tinha que fazer.
O único jeito de apaziguar os mortos de Gunkanjima.
Ele tirou o celular do bolso e olhou o relógio. Oito horas da manhã.
Chegaria bem a tempo do seu encontro com o editor.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Vou viajar \o/

Gente, eu só escrevo essa postagem nova para avisar a vocês da viagem que eu vou fazer.
Para quem não sabe, eu passei para Ciências da Computação na UFPI, e devo fazer minha inscrição na instituição na quinta e na sexta, o que significa viajar até teresina até amanhã.
Eu acabei de vir da rodoviária (papai queria pagar uma passagem de avião, mas foi tudo muito em cima da hora), e marquei minha viagem para amanhã, às 12h30min, na quarta-feira.
A viagem deve durar sete horas. Pouca coisa, né?
Pois é, mas é importante que eu vá.
Desejem-me sorte.
:)
até

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Amnésia



Tick, tack, fez o relógio – daqueles antigos, redondos, com dois sinos em cima.
Era para ser um som relaxante, ele achava. Para os outros, talvez — talvez até mesmo para o próprio Doutor Roberto ­­­—, mas para ele era um pesadelo.
Ele se sentou desconfortavelmente na cadeira do consultório, meio olhando para o doutor, meio olhando para o nada. O médico olhou para ele com um ar bondoso de quem tem o dia todo para ouvir o que ele tivesse que dizer, não interessava o quão idiota soasse. Tiago olhou de volta, mas desviou logo, localizando uma mancha na tinta que cobria as paredes do consultório e se focando nela.
Passaram-se alguns minutos, e o doutor resolveu fazer a primeira aproximação — calma e contidamente, sem pressa.
“Tiago, você tem estado conosco aqui há algum tempo, não é?”
Ele finalmente olha para ele, e murmura um “é...” sem muita força, o que permite que Roberto continue a se aproximar, como a um animal acuado no canto, sem querer assustá-lo.
“Pode me contar algo interessante que tenha acontecido nos últimos dias? Uma das enfermeiras me falou que você fez um desenho lindo dela. Você gosta de desenhar?”
Ele olhou para Roberto, com um novo interesse.
“Gosto... Gostava...”, diz.
“E por que perdeu o interesse em desenhar, Tiago?”, pergunta.
“É uma longa história, doutor...”
Ele se remexe na cadeira, mais desconfortável agora, mas sentindo uma vontade nova de contar ao médico o que não tinha contado a ninguém.
“Tem algo a ver com os seus pesadelos?”, diz o médico, “O motivo de você estar aqui conosco?”
“Sim”, diz ele.
“Pode contar para mim o que quiser, Tiago”, diz, “Estou aqui para te ouvir, sem julgar, nem comentar, só ouvir”.
“Tudo bem...”, e começa a contar sua história. O doutor aperta o botão da gravação escondido debaixo da mesa, para não intimidá-lo, preparando-se para ouvir o que ele tinha para contar.

“Eu e Marcos éramos melhores amigos”, começou, sentindo a força para falar, sabendo que, agora que começara, seria difícil parar. “Desde o ensino fundamental, na escola pública em que estudávamos.
“Sempre tivemos outros amigos e namoradas, claro, mas nossa relação era mais profunda do que mera amizade. Era mais profunda e mais diferente de qualquer relação que você conheça.
“Não me leve a mal, não era nada sexual — se foi isso que eu dei a entender —, era mais uma coisa de irmãos. Não de criação, ou de sangue. Irmãos de mente.
“Às vezes... Não sei como explicar. O senhor vai achar que é parte do que me trouxe para cá, mas não é, doutor, não é.
“Ou talvez até seja. Não sei mais. Eu juro que não sei mais”.
Ele cobre o rosto com uma das mãos, esfregando os olhos, e depois olha para o médico, com uma expressão que só podia ser entendida como desespero e desorientação — não eram a mesma coisa?
“Às vezes — lá vai — eu sabia de coisas que eu simplesmente não podia saber, antes de ele me contar. E ele também.
“Era como uma sincronia, entende? Não acontecia com outras pessoas — pelo menos eu não conseguia com mais ninguém —,  só entre nós dois.
“De qualquer forma, os anos passaram e nenhum de nós conseguiu entrar para a faculdade, ou arrumar empregos fixos, então passamos para uma vida de crimes pequenos, furtos em geral, nada muito sério.
“Passamos a pichar por aí. Éramos ambos muito bons, mas Marcos era melhor. Eu sempre sentia que as figuras que ele desenhava nos muros podiam simplesmente ganhar vida e sair por aí.
“Elas não eram vívidas, nem realistas, doutor, não pareciam mais fotografias do que pinturas a óleo. Mas sim, davam a impressão de estarem vivas”.
Ele suspirou, cobrindo mais uma vez o rosto com aquele gesto de cansaço, expondo sua expressão de desespero e desorientação e retomou a história, dessa vez dando um salto até acontecimentos de três anos antes, dois anos antes de ele entrar para o hospital psiquiátrico.
“Um dia ele me disse que teve uma visão num sonho de um desenho especial, que queria fazer no muro da nossa antiga escola, perto da praça onde tem aquele homem parado olhando o horizonte, encarando nada mais que prédios e mais prédios naquela direção, tão distante de realmente ver o horizonte.
“Não acontecia sempre, mas dessa vez eu vi na minha cabeça a imagem perfeitamente. Era uma pessoa sorrindo, de olhos abertos, olhando para o espectador.
“Digo pessoa, doutor, porque a figura não tinha nem sexo, nem idade. Talvez nem fosse uma pessoa, afinal de contas.
“A princípio”, diz, passando a mão nos cabelos a apoiando os cotovelos nos joelhos, se aproximando do médico, “não achei nada de mais na figura. Mas Marcos queria fazê-la, então eu deixei.
“Se arrependimento matasse, doutor, eu já teria morrido mais vezes do que se pode contar. Às vezes sonho com aquele momento, e eu sinto uma vontade enorme de gritar ‘Não! Pare! Não faça isso!’. Mas já é tarde demais, doutor. Tarde demais.
“Na noite seguinte, estávamos na frente da escola, perto de uma praça vazia. Ninguém a vista em nenhuma direção. Começamos a desenhar.
“Pegamos as tintas e preparamos a parede. Na primeira passada de tinta, eu senti que algo diferente estava no ar. Um formigamento no ar, sabe? Acho que não. Nunca vou conseguir descrever aquela situação para ninguém.
“Ele quis começar pelo sorriso. Eu achei estranho ele começar por aquela parte, sendo que nem tínhamos feito o rosto ainda, mas, mais uma vez, eu deixei que ele fizesse o que queria. O desenho era dele, afinal.
“Duas horas se passaram, e já estávamos desenhando o resto do rosto, exceto os olhos. ‘Os olhos a gente faz por último, viu?’, ele disse, e eu aceitei.
“Mas havia algo de indevidamente estranho naquele desenho. A cada segundo que passava, ele ia mudando. Eu sentia aquele sorriso ficando maior e maior, mais e mais aberto, revelando mais e mais dentes, mais e mais, mais e mais, mais e mais...”
Ele estava tremendo visivelmente, com medo da visão. Dr. Roberto estava ficando um pouco receoso com aquela história. Começava a desejar que a hora que eles tinham acabasse. Olhou para o relógio discretamente — tick, tack —, e viu que faltavam apenas dez minutos para que ele pudesse mandar Tiago embora e receitar uma boa dose de remédios para dormir — talvez ele até pegasse alguns para si mesmo, mas mantinha a discrição.
“Tudo bem, tudo bem. Sem pressa”, diz, “Acha que consegue continuar?”
Ele suspira, mas balança a cabeça afirmativamente.
“Eu...”, pigarreia, “Eu continuei até certo ponto, quando íamos começar os olhos. Mas então eu decidi não continuar. Não queria que aquela coisa pudesse me ver. A idéia me fez, e ainda faz, ficar com medo.
“Ele discutiu comigo e brigou. Dizia que, agora que tinha começado, teria que terminar, que não aceitaria que eu simplesmente abandonasse o projeto pela metade.
“Eu olhei para o relógio, mas ele tinha parado de funcionar. Devia ser umas quatro da manhã, mas achava que podia chegar em casa antes de amanhecer”.
Ele afundou na cadeira, olhando o médico nos olhos.
“Nunca mais vi Marcos.
“Lembro de ele ter ficado lá para completar o desenho, mas não sei o que aconteceu com ele. Nem a polícia.
“Procuraram ele por meses, sabia? Não acharam nada. Ele havia sumido e deixado todas as latas de tinta na frente da imagem.
“Passei pela praça um dia, a caminho de uma lanchonete que aparentemente estava empregando, e vi o desenho. Algo nele ficava me chamando, e eu senti que talvez finalmente pudesse resolver aquilo, então eu me desviei do caminho para aquela figura.
“Ao chegar lá, doutor...”
Não termina. Respira fundo e contém as lágrimas. Recomeça.
“Ela estava completa, pelo menos à primeira vista. Tinha dois olhos arregalados no que podia ser tanto surpresa, quanto sarcasmo, quanto desespero, quanto assassínio. Você escolhe, doutor. Eu vi tudo aquilo naqueles olhos maníacos.
“O sorriso não era mais um sorriso. Era uma boca aberta numa risada constante. Era uma figura que gargalhava de olhos abertos, doutor. Olhos bem abertos, zombando de nós, fascinando-nos naquele olhar assassino, nos fazendo — ah, que ironia, não? Enlouquecer, doutor. Ela nos fazia enlouquecer, caso fitássemos o fundo dos olhos dela.
“Mas não estava completa. Eu sabia disso. Vi assim que cheguei mais perto. Faltava o acabamento, o que fazia o desenho durar, e ficar bem definido. Esse não tinha nada daquilo. Eu sabia que ele não duraria quinze anos naquela parede, mas sabia que aquela figura tinha seus próprios métodos de manter-se viva, não é? Não se chega nesse nível sem saber uma ou duas coisas sobre sobrevivência.
“Desde aquele dia, eu comecei a sonhar com ela.
“Ela está em todo lugar, e me chama. Zomba de mim e me chama. Éramos uma dupla, não? Quer que eu a termine. Quer que sua existência nesse mundo seja indelével, quer finalmente cumprir seu projeto de tantos anos – milênios, se quer saber a minha opinião.
“Uma vez eu fui. Foi mais ou menos um mês depois de vê-la na praça. Levei minhas tintas, e estava pronto para pôr um fim naquela coisa toda.
“Estava pronto para atender seu chamado, entende? Estava pronto para terminar a porra do desenho e que se dane o mundo...
“Mas, quando eu cheguei lá, e olhei a figura no fundo daqueles olhos cheios de vida e perfídia, e vi o que tinha feito com Marcos. Na verdade, não me lembro do que vi naquele dia. Devo ter bloqueado da memória, doutor, mas, por favor, não tente me fazer lembrar. Eu não quero lembrar”.
Dr. Roberto estava inquieto e suando frio naquele terno. Olhou para o relógio. Três minutos? Como? Estavam lá há pelo menos quatro horas! Por que o tempo estava passando tão devagar? Ele estava dividido. Boa parte dele queria expulsar Tiago do consultório e tirá-lo do hospital psiquiátrico para sempre, nunca mais vê-lo. Outra parte, igualmente forte, não conseguia resistir à tentação de saber o final.
“Eu usei toda a minha força, e consegui pegar a tinta preta. Pintei por cima da figura um grande bloco preto, e continuei até esvaziar a lata. Depois fui embora, correndo.
“No dia seguinte, doutor, eu resolvi passar na praça e ver a reação das pessoas ao verem aquela figura horrível coberta pelo bloco preto. Na primeira vez que fui lá, as pessoas sempre desviavam um pouco, e evitavam o muro em que ela estava. Na verdade, algumas pessoas de carro simplesmente não passavam por lá. Preferiam dar a volta no quarteirão para voltar ao cominho original.
“Pois bem, ao chegar lá, você não conseguiria imaginar a minha surpresa: ela estava de volta. Como se nada tivesse acontecido, o desenho ainda estava na parede.
“Foi a primeira vez que notei que seus olhos seguiam você aonde quer que você fosse. Ela estava olhando diretamente para mim, na sua risada ensandecida, desprezando meus esforços.
“Eu corri, doutor. Eu corri.
“Não saí da cama o dia todo.
“Comecei a ver a imagem em todo lugar. Em cada poça d’água, em cada mancha, em casa folhagem, em cada nuvem. Ela estava em todo lugar, me olhando, me encarando, louca para me devorar se eu olhasse de volta”.
Ele estava chorando e não percebia. Nem olhava mais para o médico, mas sim encarava a parede branca detrás dele. O médico olhou para o relógio de novo. Um minuto. Graças a deus.
“Eu passei quase um mês sem dormir depois daquilo. Fiquei viciado em drogas que me dessem energia, qualquer coisa que me tirasse o sono, que me impedisse de dormir. Nunca usei drogas que me alucinassem. Tenho certeza de que a única coisa que veria seria ela, a figura.
“O resto da história você sabe. Passei um ano sofrendo com aquelas visões, sem nem dormir, nunca com algum emprego. Foi quando tive meu ataque que vocês me levaram para cá.
“Estava na rua, perto da escola, perto dela, e comecei a ouvir a voz da criatura. Não sei por que fui lá, acho que ela me arrastou inconsciente para lá. Naqueles tempos, eu andava sem rumo, quase mendigo. Ela ria horrendamente de mim. Ria, ria, ria, como se o meu ataque de pânico fosse a coisa mais engraçada do mundo.
“Eu comecei a gritar e babar. Caí no chão, chorando e gritando para que ela parasse. Não me lembro de mais nada antes de acordar amarrado a uma maca desse hospital”.
Ele olha para o médico, que simplesmente o olha de volta, sem saber o que dizer.
Ele olha para o relógio e vê que o tempo dele finalmente acabou.
“Tiago”, diz, se levantando da cadeira, “infelizmente nossa hora expirou. Na próxima sessão nós vamos falar mais sobre o incidente, pode ser?”.
“Pode, acho...”, diz o outro, “Mas eu não sei. Eu tenho começado a esquecer alguns detalhes. Acho que tem alguém do meu lado nessa história, apagando minha memória pouco a pouco. Gosto de pensar que um dia eu não vou nem lembrar mais de nada.
“Infelizmente, acho que isso também significa esquecer do Marcos”.
Vai embora um tempo depois, deixando o médico sozinho com seus pensamentos.
Era lógico que tudo era um delírio dele, não é? Todo aquele relato era surreal demais para ser verdade. Não era?
Certamente, ele não encontraria nada caso fosse até a praça onde tem a estátua de um homem olhando o horizonte. Não haveria nenhuma figura enlouquecida na parede.
Haveria uma escola, e provavelmente estaria toda pichada. Mas não haveria aquilo.
Haveria?
Doutor Roberto brincou com aquela pergunta por alguns momentos.
Não era a razão que o fazia pensar assim. Era o medo.
Medo de que houvesse realmente algo lá.
Se fosse lá, tinha certeza de que encontraria nada.
E ele foi.

Semanas depois, Tiago senta na sua cama, se sentindo meio mal.
O jornal matinal está na sua cabeceira.
Ele olha a primeira página, com espanto.
Na primeira página, uma matéria sobre o Dr. Roberto.
A reportagem dizia que ele tinha ido a uma escola velha e ateado fogo ao lugar, deixando-se morrer lá, sem deixar nenhum bilhete de suicídio nem nada.
Tiago olha com uma expressão confusa para a foto das ruínas.
O fogo queimou por 13 horas antes de apagar, lê. Ele nota os muros destruídos e sente um impulso de felicidade enorme dentro dele, mas não sabe por quê.
Ele joga o jornal de lado, sem entender o porquê daquilo tudo.
Ele não reconheceu nem a praça com a estátua do homem olhando o horizonte.
Tiago já não lembrava.