sexta-feira, 12 de agosto de 2011

O Porto e a Luz da Lua

"Ok, o meu psicólogo me mandou fazer isso", disse ele, sentado num sofá de uma sala de estar bem iluminada, com o som das ondas quebrando na praia, segurando um gravador. "Tudo começou três anos atrás, quando eu e minha família - minha mulher e minha filha - viajamos até a essa casa portuária alugada, para passarmos um fim-de-semana sozinhos, sem a confusão da cidade", dizia.
"Nós nunca tínhamos tempo um para o outro - eu e meu trabalho nas relações públicas de uma empresa grande, Ana na faculdade. Cláudia no meio, pobrezinha - nós mal a víamos.
"Por isso, essa viagem de fim-de-semana, que nós programávamos há tanto tempo, era tão especial".
"Saímos no sábado bem no começo da tarde, Cláudia radiante com a viagem de ferry boat que faríamos, Ana, minha esposa, sentada ao meu lado, dormindo a viagem inteira.
"Éramos uma família... Feliz, e aquele fim-de-semana prometia-nos um bom descanso", um suspiro, não acreditando nas próprias palavras. Na sua cabeça, o psicólogo, para quem estava fazendo aquela fita, pedia a ele pela verdade, e só a verdade. Ninguém o julgaria mais.
Ele pensa, enquanto fala ao gravador, no quanto daquilo é verdade. Eram mesmo uma família meio desencontrada mas feliz? Não éramos um casal em decadência, um casal que jamais deveria ter sido. Um casal que teve uma filha para salvar um casamento em pedaços.
Ele tinha uma amante. Não era um emprego que levava a maior parte do tempo - era a vida dupla dele. Seu desejo interno de sair de casa e nunca voltar. E ela não sentia o mesmo?
Então porque ainda estavam juntos? Sua amante desejava ser a única dele, queria ver-se livre de Ana.
Mas havia Cláudia, oh, tão inocente, tão pura, presa com um casal de monstros que só lhe permitiram a existência por puro egoísmo. Medo. Comodismo. Não queriam encarar o fracasso de frente.
Depois do acontecido, ele nunca mais falou com a amante.
A culpa o corroia por dentro.
David, redento, agora sentava no mesmo sofá que sentara três anos antes, e chorava, com o gravador jogado num canto, ainda gravando, esperando que ele retomasse donde havia parado. Ele respira fundo, enxuga os olhos, firme e confiante. Olha o gravador jogado no canto, e decide continuar - não iria desistir ali, custasse o que custasse.
"Não... Não éramos felizes. Exceto por Cláudia - ela estava sempre sorrindo.
"Eu e Ana, nós... O amor já havia acabado. E todo dia somava-se a uma pilha de decepções", suspira, "Essa viagem era nosso ópio, nossa ilusão de que tudo estaria bem. Mas não estava".
"Mas, voltando ao carro, trouxemos, também, o Golden Retriever da minha filha, Thor, que estava balançando a cauda, contente da vida, com a cabeça do lado de fora do carro".
"Chegamos em pouco tempo - Cláudia logo se cansou da viagem no ferry, e foi dormir também com Thor aninhado no colo; eu fiquei dirigindo sozinho, aproveitando a calmaria".
Ele se ajeitou no sofá, sabendo bem demais que estava perto da parte mais difícil. "Vá com calma, David, vá com calma e não se preocupe com o tempo - apenas chegue lá", o psicólogo dizia, mas ele mesmo não estava seguro daquilo. Em tudo que olhava, só havia lembranças, em tudo que tocava, podia até sentir o calor delas lá, como se elas tivessem acabado de estar lá; em tudo que cheirava, vinha-lhe o perfume de Ana, o cheiro de criança de Cláudia, até mesmo o cheiro de Thor. Ele estava sozinho na casa portuária, sentado no sofá, divagando com o gravador ligado, gerando um silêncio de vários segundos na gravação. De repente voltou a si, prosseguindo com a gravação, afastando aqueles pensamentos da cabeça.
"Assim que chegamos, desfizemos as malas e fomos até a varanda, conversar. Cláudia e seu cachorro foram correr na praia, enquanto eu e Ana dividíamos uma boa margerita, só para passar o tempo. Naquele momento, tão simples, dividindo uma bebida com a minha mulher no fim da tarde, conversando. Será que eu ousei pensar que tudo se resolveria? Será que ela pensou assim?
"Eu penso, será que, à noite, faríamos amor como nunca havíamos feito antes, e, de manhã cedo, comeríamos o pão um do outro, sorrindo como dois adolescentes?
"Acho que eu cheguei a pensar tanta tolice. Mas, eu me pergunto, será que ela também pensou?".
Um vento frio veio da porta, anunciando a todos os moradores que a tarde estava no seu final, e que a noite seria gélida.
"Almoçamos o que havíamos trazido da cidade - hambúrgueres e refrigerante -, o que também constituiria o nosso jantar, apesar de Ana ter reclamado. 'Isso engorda muito! Vamos comer isso aí amanhã também?', ela disse, mas acabou comendo também.
"Infelizmente, não foi isso que almoçamos no dia seguinte".
Estava entardecendo, e David estava se cansando daquilo tudo, e a noite estava subindo por suas coxas, espreitando a chance de invadir de vez o seu espaço. Mas ele se lembrava das palavras do psicólogo, que dizia para ele ir em frente e não desistir sem ter coberto o máximo possível. Continuou:
"A noite caiu bem rápido, provavelmente porque estávamos nos divertindo bastante, então nós jantamos e nos reunimos na sala de estar, onde eu estou sentado agora. Cláudia se sentou no chão com Thor; eu e Ana ficamos neste mesmo sofá, abraçados.
"Minutos se passaram enquanto nós conversávamos - sobre tudo, sobre nada, jogar conversa fora -, e nós nem percebemos o tempo passar, rindo das brincadeiras da garota com o cachorro; eu provavelmente ainda estava pensando na nossa possível noite porvir".
Dessa vez ele desligou o gravador antes de voltar a falar.
Essa era realmente a parte difícil, a parte em que tudo foi ao Inferno, a parte que até hoje lhe assombrava os sonhos.
Tomando coragem, num esforço quase hercúleo, apertou o botão e voltou a gravar.
"De repente, uma música soou por toda a casa.
"Era uma sonata de piano, triste, melancólica, que ia e vinha em tons baixos, quase como ondas no mar
"Ficamos olhando em volta, procurando a fonte de tal música, com medo.
"A música era ao mesmo tempo bela e terrível, uma música devastadora, cruel e fria, numa melodia que só absorveria completamente o momento se...".
Parou, percebendo algo - tão simples tão óbvio.
"A energia caiu de repente, e a sala foi tomada pela luz da lua - cheia, que brilhava lindamente sobre o mar. Cláudia pulou para o sofá conosco e se encolheu, com medo. Estávamos todos com medo. Ana me olhou com um ar desesperado. 'Vá ver o que está errado, David, por favor!', aqueles olhos suplicavam.
"A luz da lua banhava a sala de um jeito tão fúnebre e sombrio, acompanhada pela música, numa ode demoníaca.
"Foi quando Thor saiu em disparada para a porta. 'Não, garoto!', gritei, pulando atrás dele. Cláudia começou a chorar no colo de Ana.
"A música continuava em seu tom depressivo, porém belo, enquanto eu corria para alcançar o cachorro.
"Quando eu cheguei à praia...", ele diz, mas não termina, os olhos cheios de lágrimas. A noite agora um pouco mais profunda do que antes, um pouco mais letal. Soluçando, ele esfrega os olhos e volta a narrar.
"Quando... Quando eu cheguei à praia, Thor estava parado olhando o mar. Eu parei atrás dele, estacando de repente, como se já soubesse o que estava porvir. Se eu soubesse, porém, teria enlouquecido, e morrido na minha loucura.
"Havia uma névoa forte cobrindo o mar, e, além da orla, não se via nada. A luz da lua refletia na água com tons enegrecidos.
"Era um barco simples, de madeira, com uma única pessoa pilotando. Era (o que parecia ser) um homem, muito alto, esguio, usando uma capa preta sem capuz, de manga comprida, que vinha até a cintura e se abria no sino que lhe cobria as pernas.
"Nunca pude ver o rosto dele, pela escuridão e pela névoa, mas vi o que estava em suas mãos.
"Era um... Um... Um cajado longo, perigoso, poderoso, como a própria morte e sua foice, ou algo até pior.
"Eu já tinha ouvido aquela música, e ouço-a mais ainda desde então, nos meus sonhos. Nos meus sonhos aonde aquele homem no barco vem e me chama para ele. 'Mas é muito fundo aí', digo, sentado na areia da praia, fraco. Cláudia aparece no barco, pondo os pezinhos na água. 'Não é, não, papai, é bom'. Ah, e eu resisto, eu resisto, eu nunca vou, eu sempre fico na praia, suplicando que eu acorde. E eu acordo, mas essa música... Continua comigo, o dia todo. Às vezes ela vai embora, mas sempre volta.
"Então Thor corre até o barco como se tivesse sido chamado - e eu acredito que tenha sido.
“'THOR! NÃO!', Cláudia grita, e eu percebo que estão as duas atrás de mim, na porta de casa, abraçadas. Ela se solta da mãe, e passa por mim, impotente - oh, eu ainda posso sentir o vento passando por mim enquanto ela corria; como eu me arrependo de não ter-lhe agarrado.
"Thor está nadando fundo agora, e ela ia atrás, nadando. Ana correu e gritou 'FAÇA ALGUMA COISA, DAVID! FAÇA ALGUMA COISA! A SUA FILHA VAI MORRER!', e aquilo quebra a minha paralisia. Ana está nadando atrás de Cláudia com toda a força, e eu faço o mesmo, atrás das duas.
"Thor nada sem prestar atenção ao desespero da garota atrás dele, sem olhar para trás, antes de desaparecer sob o tapete de água, e não voltar. Cláudia mergulha para tentar pegá-lo, e Ana vai atrás.
"Cláudia volta à tona, e eu nado o mais rápido possível para ela, e ela grita, ela grita. 'PAI! MÃE! O THOR FOI LEVADO!', chorando, 'MEU CACHORRO!'. Ela submerge de repente, como se puxada por algo, algo feio e horrível - pelos afogados e seus úmidos ossos putrefatos. Ana grita por ela, até que é puxada também".
Eu agarro a mão de Ana e puxo o quanto posso. Debaixo d'água, posso ver uma mãozinha branca iluminada pela luz da lua, cujo corpo está oculto pela escuridão absoluta do fundo do mar; a mãozinha agarrada ao tornozelo da minha mulher, puxando. "'TIRE-NOS DAQUI, DAVID! TIRE-NOS DAQUI!', ela grita, tentando respirar, enquanto eu puxo, puxo, puxo até quase rasgar os braços.
"Mas eu estou afundando junto dela, sendo arrastado para aquelas profundezas obscuras que sabe-se lá o que guardam.
"E eu estou morrendo de medo. Estou morrendo, morrendo de medo.
"E, com um último puxão, eu solto".
Ele pára de falar, chorando em grandes goles de ar, se sentindo miserável.
"EU SOLTEI, CARAMBA! EU SOLTEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEI! EU SOLTEI A MÃO DELA, EU DEIXEI MINHA MULHER E MINHA FILHA SE AFOGAREM PORQUE EU SOU UM MALDITO FRACOTE!"
Sob a luz da lua, David grita, grita, grita, até sentir a garganta rasgar.
Mas ele tem um dever, o dever de ir até o final.
Se recuperando do ataque, ele continua.
"Eu nadei desesperadamente até a praia, virei-me, e vi o homem no barco sorrir. Eu não sei como. Àquela distância, não devia ser possível. Mas eu o vi sorrir um sorriso psicótico ao som da música.
"E desapareceu na névoa, tal como veio.
"Eu não sei quando a música parou de tocar. Desmaiei apoiado na parede da casa portuária, olhando o mar. No dia seguinte, peguei meu carro e saí de lá. Voltei para casa, onde comecei a ter os sonhos em que o homem no barco aparecia.
"Fiz terapia e quase fui internado. Meu psicólogo disse para eu voltar e encarar meus medos, perceber que nada daquilo havia sido real, que o cachorro da minha filha correu para o mar, e ela foi junto, acabando por afogar os três. Os corpos nunca foram achados, mas... Eu não sei". 
Desliga o gravador e percebe que é noite. Percebe a névoa sobre o oceano. 
Percebe a luz da lua cheia - cheia de vida e cheia de morte.
A música começa a tocar, vinda de qualquer lugar. De repente, ele sabe que música é aquela.
"Moonlight Sonata", diz, com um pequeno sorriso.
Ele sai e vai até a praia, a casa na completa escuridão.
Da névoa, o conhecido barco aparece.
O homem está lá, como esteve naquele dia, como se ainda fosse a mesma noite.
E o chama.
Cláudia e Ana aparecem, com Thor do lado delas, e, naquele momento, ele se esquece de tudo - elas estão lá, vivas.
Elas o chamam, sorrindo sorrisos que deviam estar mortos há tanto tempo.
Mas ele não percebe isso - elas estão vivas e bem, e isso é o que importa -, e ele vai.
Ele entra na água andando, e segue andando até não poder tocar o fundo.
A música finalmente chega ao final, e ele está sorrindo.
Sob a luz da lua, ele se afoga.

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