sábado, 5 de novembro de 2011

"Independentemente do que diga o seu confiável Timex" - Parte Três

Ela fitou o velho nos olhos, enquanto o mesmo mexia-se na poltrona com um chiado cansado, espalhando no ar o odor da idade, talvez até mesmo o da morte.
Estava perto, ela sentia. Estava perto, mas estava tão longe que nem ela mesma sabia aonde ela estava. Era como alguém que saía no meio de uma nevasca e perdia a guia. Olharia para os lados e a faixa vermelha de segurança estaria invisível. Olharia para trás, e o lugar daonde viera não passaria de uma fantasma na neve, igualmente submerso. Olharia para frente, e na frente só haveria o que havia aos lados e atrás: neve.
Lentamente, então, morreria sozinho no meio da nevasca.
Na sua cabeça veio um pensamento completamente fora de hora, mas igualmente feliz.
Talvez seja só um fantasma, afinal de contas, pensou, desesperada, e fantasmas não contam histórias. Parou e pensou melhor. Fantasmas... Sim, estes contariam as melhores histórias. Perdidas em meio às mortas bocas que já as sussurraram, apagadas em livros, cartas, textos, poemas, cadernos e diários de loucos.
Sim, os fantasmas lhe contariam as melhores histórias.
Mas ela queria ouvir? Alguém queria ouvir?
Os fantasmas jazeriam, então, cada qual com sua história morta, esperando sua vez de ser ouvido, e, mesmo que por uma última vez, atormentar aquele que ouve.
"Charlie, querida", disse o velho com a voz rasgada, como a de alguém que fumou a vida toda, "Charlie era a pessoa mais amável do mundo! Ela era daquelas que resgatam animais nas ruas, dão-nos toda a boa-vida que eles nunca tiveram, e os amava como nunca amou ninguém.
"Ora, eu nem sei se ela me amava mesmo, ou se ela só me tolerava".
Ele tosse um pouco, e se ajeita na velha poltrona, mais uma vez acendendo o odor levemente peculiar que exalava do seu corpo.
"Naquele verão, quando Joy Spring explodia nas rádios, e Clifford Brown fazia-nos sentir nas nuvens, havíamos comprado um casa só para nós - e nosso filho, Cole". Ao ouvir o nome do filho do velho, seus olhos perscrutaram as plateleiras, em busca de uma foto dele, e - a-há! -, lá estava, a imagem de um garoto espinhento, louro, um tanto baixo para a idade (uns dezessete, talvez). Ao lado da foto, havia outro, presumivelmente da mesma pessoa, mais adulta, talvez formando-se na faculdade.
O que era mesmo?
Medicina, pensou. Não sabia como ela sabia, ela só sabia.
A neve começou a cair do lado de fora, o que a fez lembrar-se do seu diálogo interior de antes, mas dessa vez ela se perguntava se ficar dentro daquele casarão seria realmente mais seguro do que arriscar-se do lado de fora, no escuro e na neve. Mas, antes que ela pudesse se fazer valer desses pensamentos, o velho recomeçou o seu contar de histórias.
"A casa não era muita coisa, isso eu posso dizer.
"Os tempos da guerra fria eram outros. Não eram de longe tão ruins quanto os da segunda guerra, mas não eram tão prósperos assim para o cidadão comum, que a gente vê nas ruas todo dia.
"Foi melhor para as grandes corporações, e para quem investia dinheiro, mas, você sabe, não? Fazia pouco tempo havíamos enfrentado as duas maiores guerras da história num sanduíche com recheio de crise, então perdoe-me por não ter estado tão confiante assim no nosso país.
"E, é claro, havia a ameaça de invasão dos sovietes. Mais tarde chegaríamos ao ponto de acusar nossos próprios vizinhos de serem comunistas por fazerem caridade!
"De qualquer forma, o verão de 54 ficou marcado no meu coração assim como no meu corpo.
"A casa - agora eu percebi que divaguei demais, querida, e peço desculpas - era aqui mesmo, mas não era essa. Na verdade a casa não era completamente nossa; nós só tínhamos pagado a primeira prestação, mas, bem, era uma casa, e era nossa, independentemente do que dissessem os papéis.
"Chegamos lá cerca de um mês antes de tudo acontecer, e, por Deus!, ela era linda. Nosso filho, ainda um bebê, tinha seu próprio quartinho que não era uma extensão do nosso, nossa cozinha era um cômodo definitivamente diferente da sala de jantar, que por sua vez também estava separado por pelo menos uma parede da sala de estar.
"Sim, era uma casa de sonhos - sonhos bem medíocres, mas pelo menos eram sonhos, e estavam realizados. Por ora".
Charlotte sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha, e um nódulo formar-se na garganta.
Sim, ela também lera nos jornais, e havia sido uma catástrofe.
O final do verão de 54 realmente tinha ficado para a história.

Um comentário:

  1. Não comentei antes, porque não tenho nada realmente interessante a comentar além do fato de estar ansiosa pelas próximas partes. Sem bons palpites por enquanto...

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