sexta-feira, 7 de outubro de 2011

O Vento que vem do Norte

O apartamento é tão vazio.
Mas o mundo continuou girando eternamente, as pessoas continuaram girando internamente, a cada um o ostracismo que lhe cabe.
Bem, eu não estou pronto para girar, eu quero parar, sentir meu sangue saindo das pontas dos dedos, sentir o ébrio desequilíbrio que me traz.
Eu não quero esse ostracismo de que me incumbiram, não quero vestir essa farda.
Eu só quero parar.
Eu não quero morrer - pelo menos não até agora -, só quero parar por fôlego, e prometo que volto à tona. Prometo.
Eu só... Eu não consigo... Não consigo ver! Não consigo ver essa merda de mundo continuar a girar!
Então é isso, não é? "No final das contas somos todos sobreviventes de nós mesmos".
Todos os dias o sol bate no meu rosto, à caminho do trabalho, e eu tento sentí-lo vibrar em sua majestade, mas só o que alcança o meu rosto é o fedor pútrido do vento que vem do norte. E frio.
O frio é a pior parte.
Às vezes eu me pego no meio da madrugada sem sentir meus dedos. Às vezes eu tento me mexer mas não consigo! Não consigo! É como se eu de repente não me pudesse controlar... e vem tantos barulhos horríveis de noite. Sons do inferno, vozes atormentadas, almas retorcidas.
Aí passa.
Eu me mexo de novo, e fico feliz por isso.
A felicidade, porém, é tão fugaz quanto o vento que vem do norte.


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Outra madrugada, e eu contemplo a fotografia de nós três, tolos felizes que éramos.
Eu, à direita, com uma expressão que dizia "estou fazendo cara feia, mas é só brincadeira, campeão!", Neto, nosso filho, que só se chamava "Neto", apesar de não ser nomeado em função de nenhum avô, com um sorrisão-ão-ão, como ele gostava de dizer, no auge dos seus cinco anos. Clarice, oh, Clarice.
Clarice e seus cabelos cor de mel e noz moscada. Não tinha o sorriso mais bonito de todos, mas certamente tinha os olhos mais lindos que eu já vi.
Apaixonei-me por olhos âmbar, que mudavam de cor sob luzes diferentes. Uma espécie reflexo da sua própria existência tão fluida quando possível, de languidez tão... Tão... lânguida. Foge às minhas habilidades descrevê-la, e isso me dói mais que acordar de um sonho em que ela ainda está viva e perceber dela não restaram nem as cinzas, somente um túmulo vazio no meio de tantos outros.
Eu só queria ter algo mais que aquela foto para lembrar-me deles. Aquela foto é antiga, e é tudo o que eu tenho. Tudo que sobreviveu ao incêndio.


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Hoje foi outro dia normal.
Se é que "normal" ainda pode definir a minha vida.
Certamente que não.
Hoje eu entrei no carro sem olhar para os lados, mas o vento que vem do norte me surpreende mais uma vez com seu odor cremoso, quase como se estivesse fazendo o seu melhor para me convidar até lá.
Eu me pergunto se devo ir até lá. Também me pergunto se alguém mais sente esse cheiro.
Eu olho para as pessoas na rua, ainda girando e jogando seus ostracismos até mim, e percebo que não, decididamente não.
A ideia de visitar o lugar acalenta minha mente de novo, e eu sou atingido em cheio por memórias daquele dia.
Eu receberia o aviso ainda no hospital, e correria até o carro e arrancaria do estacionamento com tudo.
Ficaria preso no engarrafamento.
Chegaria tarde demais.
Os bombeiros diriam que tinha sido um vazamento de gás que ninguém tinha notado até Clarice querer fazer um café no fogão.
Eles também diriam que o fogo se espalhou muito rápido para que alguém pudesse fazer algo. Diriam que o meu filho ficou preso no andar de cima sem ter lugar para onde ir, até morrer sufocado na fumaça e no calor.
Que Clarice queimou até a morte ainda na cozinha, provavelmente correndo e espalhando mais fogo pela casa.
Clarice queimando, seus cabelos cor de mel e noz moscada se desfazendo num pequeno tufo crespo.
Seus lindos olhos âmbar morrendo, derretendo.
Deles não resta mais nada, só dois buracos negros cadavéricos.
Eu chegaria tarde demais, e veria minha casa queimar como uma fogueira de São João, e assistiria às casas vizinhas impassíveis, e à multidão se formando. Ouviria que, foi mal, doutor, mas você não pode entrar lá. Foi mal, doutor.
E eu tentaria gritar com tudo o que tinha nos pulmões, gritar até tossir sangue, mas eu me encontraria sem voz alguma.
Eu me ajoelharia, impotente.
Porque eu havia chegado tarde demais.


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Estou chorando como uma criança agora. As memórias estão me atacando como nunca, e o vento que vem do norte tomou conta da minha casa como se sabendo da minha fraqueza.
Eu desisto de vez.
Eu olho para a pistola na minha mão, mas eu sei que não vou atirar.
Porque o vento que vem do norte continua aqui, e ele quer algo de mim.
Eu me levanto e pego as chaves do carro, e dirijo até o local que jurei jamais voltar.


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O homem segue o caminho até o local do incêndio.
Já faz dois meses, mas as faixas amarelas ainda proíbem a entrada na pilha de cinzas onde ele costumava viver.
O vento que vem do norte é mais forte ali. Ele sabe que é tolice chamar aquilo de norte sem nem mesmo saber se é norte, mas chama mesmo assim.
Ele estaciona e desce do carro, o cheiro ficando mais distinto a cada passo.
Não era um odor de morte que vinha dali.
Eram cinzas, mel e noz moscada.
Ele age como se soubesse exatamente o que está fazendo, mesmo sem fazer ideia daquilo.
Passa por debaixo da faixa e começa chapinhar em meio às poucas cinzas que restam.
De repente, ele realmente sabe o que está fazendo.
Ele anda até o fundo do lote e se joga no chão, escavando fundo nas cinzas, e lá está a caixa.
Ele a abre e a encontra cheia de fotos deles, antigas e recentes.
Ele não sabe porque elas estão ali, ou o que explicaria o fato de ele saber onde elas estavam.
Ele só está tão feliz. Tão, tão, tão feliz, que começa a chorar ali mesmo, olhando para as fotos.
E grita, grita um grito desesperado de felicidade e insanidade, entre lágrimas nas cinzas.
Ele grita, enquanto amanhece.
E o sol brilha. E ele sente paz.
Sente calor.

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