sábado, 10 de dezembro de 2011

"Independentemente do que diga o seu confiável Timex" - Parte Quatro

"Aquele verão foi marcado pelo terror", disse o velho, se preparando para sua narrativa, enquanto Charlotte olhava e olhava. Na sua cabeça, ela recapitualava tudo o que podia lembrar daquele verão.
Lembrava-se de Joy Spring, lembrava-se dos tempos pós-guerra, lembrava do nacionalismo que lhes foram injetado naqueles anos.
Naquele tempo, ser americano vinha com obrigações da alma, e cada americano deveria pagar com o que tivesse, mesmo que não fosse nada. O dever ao capitalismo católico, contra a balbúrdia atéia socialista - como lhes era explicada - dominava tudo em suas vidas. É interessante como uma idéia política de lavagem cerebral possa ter sido fundida com uma idéia de lavagem cerebral religiosa, especialmente porque do outro lado do mundo (ou bem ao lado dos E.U.A) estavam os inimigos de escrita cirílica.
Os russos não eram diferentes, de fato. De um jeito, ou de outro, estavam todos embebedando os americanos e russos, jogando-os um contra o outro, como numa brincadeira infantil em que, caso algo desse errado, ninguém escaparia vivo.
Alienados e possuídos completamente pelas forças de ambos os lados, aquele tempo foi um verdadeiro inferno.
Mas o inferno só se fez sólido no final do verão de 54.
"Comprara-nos uma casa, como disse", o velho continuou, tirando Charlotte de seus pensamentos, "Tivemos um filho, e estávamos felizes como nunca.
"Fazia uma semana que morávamos lá, e resolvemos chamar os vizinhos para um brunch, você sabe, para conhecermo-nos melhor", disse, respirando fundo.
"O brunch foi uma beleza. Conhecemos os Jefferson, os Chance, os Gordon, e, é claro, os William.
"Não vou mentir", confessou, "Não lembro de nenhum dos rosto, nem dos Jefferson, nem dos Chance e nem dos Gordon.
"Essa cabeça velha só consegue se lembrar de Greg e Anne William". Ao dizer isso, ele soltou um barulho gutural do fundo da garganta, e Charlotte percebeu de repente a verdade tão óbvia. Está morrendo, pensou, e não vai durar muito.
Mas o velho se recuperou e recomeçou sua lenta narrativa.
"Anne era uma mulher dos anos oitenta presa na década de cinquenta, sim. Tão logo nos conhecemos, eu percebi que ela diferente das outras - caramba, diferente até da minha esposa!
"Mas não era ruim, era só... Diferente.
"E dava para perceber que Greg sabia disso também - e não gostava. Ele era um daqueles caras caipirões, um homem que nós podíamos visualizar perfeitamente capinando a grama e plantando milho.
"E batendo na esposa, é claro".
Charlotte engoliu em seco, querendo perguntar aonde ia aquela história, mas sem a coragem para fazê-lo. Querendo mas não podendo, ela ficou parada, na poltrona velha, ouvindo um velho enfermo contar um velha história empoeirada.
"Desde o príncipio, ela me parecera uma mulher interessante, mas eu não pude falar com ela durante o brunch, visto que era política dos anos cinquenta de que, numa reunião, as mulheres sairiam e falariam sobre o que quer que mulheres gostassem de conversar, enquanto os homens conversariam sobre negócios, política, e tudo mais que fosse desinteressante - eu queria era falar com ela.
"Depois do brunch, no dia seguinte, minha mulher saiu com as amigas recém-conquistadas ao salão de beleza, enquanto eu fiquei em casa, na minha primeira folga do trabalho.
"Cuidei de Cole até ele dormir, depois sentei-me no sofá da sala e pus-me a olhar o tempo passar, talvez dormir um pouco.
"Ao contrário disso, assim que me sentei no sofá, veio Anne à porta. Queria falar com Charlie.
"'Poderia me dizer aonde ela foi?', perguntou, e eu lhe disse que fora ao salão, com as outras da vizinhança.
"'É sempre assim', ela falou, tristonha, e eu perguntei por quê, ao que ela respondeu 'Eu nunca faço amizades, e elas nunca me convidam para nada. Meu marido se relaciona bem com os outros homens da rua, mas eu... Bem, a mim, elas ignoram'. Convidei-a a sentar-se no sofá, e ouvi-a falar sobre sua vida, até notar que ela tinha diversas manxas roxas nos braços e que ela tinha um olho roxo coberto de maquiagem, que só se revelara quando ela começou a chorar".
Ela olhou para a figura estranha do homem, velho e cansado, perscrutando o seu rosto amassado de velhice, tentando ver algo denunciador, mas não viu nada. O velho falava a verdade - e de que lhe adiantaria mentir?
"Ao longo das semanas, nós ficamos cada vez mais próximos, e ela foi se abrindo mais e mais para mim, contando sobre o marido.
"Foi dois dias antes do acontecimento que marcou o verão de 54 que tudo desabou".
Algo dentro de Charlotte gritava incessantemente que não queria ouvir aquela parte da história, que era ruim e que ela não devia, que ela não podia, que era errado, mas ela não deu ouvidos à Charlotte pequena, com medo do escuro e do que toma vida e forma no escuro, mas não ouviu-a não porque não concordava, porque queria ouvir o resto da historia. Não ouviu-a simplesmente porque não podia se mover, porque sua única opção era ficar e escutar.

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