domingo, 2 de outubro de 2011

A Casa na Beira do Rio - Parte 1

Meu avô costumava me contar histórias da sua infância.
Eu ficava fascinado com aqueles causos infantis, de pães roubados, brigas escolares, verdadeiras Helenas de Tróia que provocavam celeumas de proporções épicas.
Todas as histórias que ele me contou - hoje eu sei que elas eram todas verdade - começavam do mesmo jeito: Carlos Roberto saía de casa com um olhar matreiro de quem procura confusão, encarando a rua norte de Tupiniquim-maior, uma cidadezinha pequena no interior de Minas. Rua esta perto da Igreja, que também funcionava como escola nos fundos.
Segundo ele, era uma boa vida, mas eu tenho minhas dúvidas.
Ele tinha muitos amigos em Tupiniquim-maior, mas, em julho de 1945, dizia, teve de se mudar para a capital, indo morar com os avós, por causa dos estudos. Nunca me explicara direito o porquê da mudança - dizia que os pais dele queriam que ele tivesse uma vida melhor, coisa que uma igreja-escola de interior jamais poderia oferecer.
De causo em causo, meu avô jamais se esquecia dos detalhes, mesmo tendo Alzheimer, o que é normal, segundo os médicos. Aparentemente, os idosos têm mais facilidade de recordar esse tipo de memória porque está numa área não-afetada pela doença, por serem memórias de longo prazo. Mas eu sei a verdadeira razão de ele jamais ter esquecido do que acontecera em Tupiniquim-maior.
Oh, Deus, eu estou segurando ela agora mesmo.

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Tudo o que eu vou narrar aqui aconteceu anos atrás, em maio do ano de 1945, e só chegou até mim ontem à noite, pela boca do meu próprio avô, no seu leito de morte.
Eu fui chamado no celular pelo Dr. Oliveira ontem à noite. "Melhor você vir logo", disse-me, "Seu Carlos não vai aguentar muito tempo aqui, esperamos o óbito para essa madrugada ainda". Isso não me chocou, por incrível que pareça. Nós já esperávamos que ele fosse partir logo, e ele também já dava sinais de já querer ir também. Mamãe não queria ver aquilo, e foi para um retiro semana passada, para tentar lidar com a perda do pai.
Não tem sido fácil para ela. Desde que papai morreu, ela não foi mais a mesma - caramba! Ela nem dirigia mais! -, sempre andando de um lado para o outro, murmurando e resmungando.
Não vou mentir e dizer que não me sinto mal. Se aquele bêbado não tivesse entrado na contra-mão com tanta rapidez, se papai não estivesse voltando do supermercado, se... Bem, tem muitos se's nessa história. Abelardo Nogueira morreu voltando das compras, provavelmente ainda pensando no jantar, e minha mãe simplesmente não conseguia aceitar aquilo, mesmo já fazendo oito meses desde que ele morreu.
Nem eu, eu acho.
Agora que eu penso, ele morreu numa quarta-feira, assim como meu avô.
Quais são as chances?


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Como eu não tenho nenhum irmão ou tio, e minha avó Júlia já partiu para o outro lado em dezembro de 2000 - mas já estávamos esperando essa, também; ela vinha lutando contra o câncer havia três anos -, a morte do meu avô foi bastante solitária. Só eu, ele, e um monte de aparelhos que tentavam mantê-lo vivo só por tempo suficiente para que eu pudesse dizer adeus. Porém eu acho que o que tem nessa caixa que agora seguro é o que o manteve vivo esse tempo todo, uma história só esperando para ser contada. Ele viveu uns bons oitenta anos, uma vida culminando naquele momento, naquele quarto hospitalar, naquela cama.
A priori, eu não achei que ele fosse falar - acho que nem os médicos esperavam isso -, e ele realmente passou alguns minutos dormindo, antes de abrir os olhos e me ver.
Eu esperava chorar naquela hora, mas vê-lo tão pequeno, tão velho, tão frágil, naquela cama realmente me tocou no fundo.
Ele tirou o aparelho respirador, claramente capaz de fazer aquilo sozinho, pelo menos por enquanto.
"Onde está", disse, pausando para respirar, "sua mãe? Cadê Ana?".
"Bem, vô, o senhor sabe como ela está. Ela não quer ver ninguém, foi para um retiro", respondo, coçando a cabeça um pouco, como quem sabe que está dando uma desculpa esfarrapada.
Ele se ajeita na cama e encara o teto, "Bem, eu acho que devia ser assim mesmo, Davi". Ele tem um ar de quem finalmente compreende as coisas, e as aceita bem como elas são.
"Você realmente foi o único que sempre gostou de ouvir minhas histórias, não é mesmo? Acho que já estava escrito para ser assim". Eu o pergunto por que ele fala daquele jeito, mas ele simplesmente balança uma mão no ar e diz: "Talvez exista um Deus por aí - não aquele para quem a gente costuma rezar, mas um completamente diferente. E talvez esse Deus seja sádico.
"Cheguei a um ponto da minha vida, filho, em que essa opção parece ser a mais correta. Afinal de contas, que tipo de Deus faria isso com uma pessoa?".
"Morrer nunca foi fácil, vovô, eu não acho que seja legal você ficar falando esse tipo de coisa tão perto de vê-lo pessoalmente", digo, um pouco irritado.
"Morrer?", ele diz, num tom de risada sarcástica, "Filho, morrer é tudo o que eu quero nesse momento. Caramba, eu vivi a minha vida esperando o momento em que eu simplesmente fosse morrer!".
"Quer dizer que o senhor não gostava da gente, se arrepende de ter vivido o suficiente para ver sua filha crescer, para me ver crescer?", agora eu estava irritado mesmo. Por que ele diria aquilo?
"Não, não, Davi, vocês nunca foram o problema.  Sempre existiram outras coisas... Coisas ruins".
Eu não respondo, mas continuo encarando-o.
"Lembra das minhas histórias? Lembra de como eu me mudei por causa dos meus pais, em julho de 45?"
Eu digo que sim, mas não acrescento que eu acho que meu avô havia finalmente perdido toda a sanidade tão perto de morrer.
"Não foi bem assim.
"Meus pais nunca quiseram que eu me mudasse de Tupiniquim-maior. Foi eu quem insistiu para mudar de cidade. Por fim, eu os venci pelo cansaço, afirmando que eu queria ter oportunidades melhores na capital. Eles me perguntavam se eu não sentiria falta dos meus amigos, ou deles. Eu dizia que sentiria para sempre falta deles, dos meus pais, mas que poderia arranjar amigos novos na capital.
"Dito e feito, depois de dois meses de insistência, meus pais aproveitaram o fim do semestre para me matricular numa escola de Belo Horizonte".
"Mas, por que você faria isso, vovô, você não gostava dos seus amigos?", perguntei.
"Gostava sim, Davi, mas aconteceu algo terrível entre nós, algo que eu nunca contei para ninguém, nem para Júlia, que eu só conheci anos depois em BH.
"Eu levei dois meses para convencer meus pais a me mudarem de cidade, então os acontecimentos que eu vou narrar agora aconteceram em maio daquele ano. Preste atenção".
E eu prestei.
E ouvi cada palavra que saía da sua boca, mesmo quando eu queria gritar para ele parar, mesmo quando desejava jamais ter atendido o Dr. Oliveira.
Eu ouvi cada palavra em silêncio, enquanto uma sombra pousava naquele quarto de hospital.

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