quinta-feira, 8 de setembro de 2011

"Independentemente do que diga o seu confiável Timex" - Parte Dois

A lua acima, tão branca e inefável quanto o vento e o escuro céu, encarava a mulher na calçada com a mesma alva indiferença com que olharia qualquer outro.
Mas ela não era qualquer outra.
Era Charlotte.
E tinha algo para fazer. 
Nas suas negras vestes, ela começa a andar, furtiva, aproximando-se mais e mais da casa apontada pelo motorista, calmamente tirando da cabeça todo tipo de pensamento sobre a coisa na ambulância, pondo o objetivo no topo de suas prioridades.
A casa na verdade é um casarão colonial, algo cuja construção datava de pelo menos um século.
Tão antigos quanto o próprio lugar, eram os demônios vivendo ali.
Ou talvez nem fossem demônios.
Talvez nem fossem mais que um.
Talvez só fosse humano. Tão humano quanto qualquer outro.
Ela avançou pela calçada até a porta, numa ladeira inclinada, ainda agindo como uma sombra, olhando para trás em busca de algum perseguidor.
No fundo de sua mente, uma vozinha alertava, gritando que aquilo era errado, que ela deveria fugir, que o que habitava entre aquelas paredes era pior do que qualquer coisa que poderia sair atrás dela, qualquer coisa jamais vista nos seus pesadelos mais alucinantes, qualquer...
A porta da casa se abriu, e o interior dela era fracamente iluminado por um candelabro de parede, dando um ar ruim de mistério - o que havia naquela


(ambulância - no fundo da ambulância)

sombra marcada pelas estantes? Eram
 
(olhos)

objetos não vistos, vasos, plantas, livros incrivelmente velhos. Charlotte-menina tremeu e se escondeu em algum ponto da mente da Charlotte-adulta. Sozinha, ela respirou fundo, adentrando à casa.
O foyer era simples, pequeno, com três portas e um portal que aparentemente dava para a sala de estar; uma escada de destino obscuro, um lustre de velas apagado, deixando a sala iluminada somente pelos dois candelabros que ali estavam.
Ela fechou a porta e começou a andar silenciosamente, passando pelo portal para a sala de estar, fechando o portal de duas portas delicadamente no caminho, dando de encontro com uma sala iluminada somente por uma lareira acesa, com muitos livros nas estantes, algumas plantas, uma mesa com três cadeiras em volta.
À frente da lareira, uma poltrona e um sofá.
Na poltrona, um velho a esperava fumando bem devagar um charuto, esperando por ela.
"Sente-se, minha criança", ele diz, e ela se senta obedientemente no sofá, olhando para o rosto dele bastante confusa. Aquele velho não era nem um pouco o que ela esperava encontrar - o que lhe foi dito que ia encontrar. Ela sentiu o papel no bolso da calça - e agora?.
"Você está aqui por uma história, não é?", continuou, mas ela não sabia se queria ou não ouvir o que o homem tinha para falar. "Pois bem, vou contar a minha história - a única história que eu conheço, a única que importa.
"Foi há tanto tempo atrás que às vezes eu nem sei se aconteceu de verdade, ou se eu sonhei tudo isso. Nesses dias, basta que eu me olhe no espelho, para que eu lembre que sim, aconteceu". Charlotte notou então que o homem tinha várias marcas de queimaduras no rosto e nas mãos, como se tivesse sobrevivido a algum incêndio horrível no passado.
"Foi o verão 1954, sessenta anos atrás, não é?
"O verão de 54 ia com tudo - a música que tocava nas rádios era o bom e velho Clifford Brown, Joy Spring, eu me lembro bem. Depois da segunda guerra, as pessoas queriam mais diversão, esquecer aqueles dias negros e tristes da história do mundo, mas ficava difícil relaxar com o perigo constante de uma invasão comunista, sabe?
"Clifford Brown - você já ouviu aquele homem errar uma nota? Pois eu lembro bem como se fosse ontem, nós tínhamos ido ao show dele, e tinha sido ótimo.
"Por 'nós' eu digo, claro, eu e minha mulher.
"Doce, doce, Charlie".
Nesse momento, Charlotte se endireitou no sofá, sentindo um calafrio percorrer o corpo todo, apesar de eles estarem sentados bem em frente à lareira.
"Doce, doce, Charlie".

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