terça-feira, 24 de janeiro de 2012

A Ilha Em Forma de Navio de Guerra

Hashima era bem o que ele esperava que fosse.
A ilha em forma de navio de guerra despontava no céu acinzentado, mostrando sua face esburacada, abandonada, em completo descaso.
Gunkanjima, a ilha em forma de navio de guerra, já tinha sido muito populosa. Foi lar de uma das maiores minas de carvão do Japão, e já chegou a ter uma das maiores concentrações populacionais com seus cinco mil habitantes.
Ele olha da ilha para seu bloco de notas.
Nele, já havia marcado todas as informações necessárias, a história resumida da ilha em poucas páginas num caderninho.
Lógico, a verdade não caberia naquele pequeno bloco. E ele queria a verdade.
Não que acreditasse em fantasmas, ou que achasse que a ilha fosse assombrada, ou que ainda acharia pessoas morando lá, ou qualquer coisa. Ele era um jornalista que procurava a verdade simplesmente pela verdade.
O homem que conduzia o barco (muito pequeno, quase um bote) era um homenzinho atarracado, um tailandês, supunha. Seu japonês era muito ruim, cheio de sotaque, mas tudo bem para ele. Desde que aquele homenzinho atarracado pudesse levá-lo até a ilha em segurança, e trazê-lo de volta no dia seguinte.
O plano era simples.
Chegaria pela manhã passaria o dia todo na ilha, vasculhando, tirando fotos, fazendo anotações, procurando algo digno de documentação. Quiçá um jornal antigo, um diário, livros, restos das muitas vidas que passaram naquele lugar.
Depois, no dia seguinte, o homem chegaria de barco no porto e o levaria de volta a Nagasaki, aonde encontraria o editor de uma revista importante, em que pretendia publicar suas descobertas, para mostrar-lhe sua proposta de reportagem. Se voltasse com material suficiente, talvez convencesse-o a publicar sua matéria, uma chance que não perderia por nada no mundo.
Satoshi era um jornalista japonês nos fins dos quarenta anos, divorciado, vivendo em um apartamento minúsculo em Tóquio, sem publicar nada desde seu divórcio, dez anos antes.
Mas você sabe que foi antes, não sabe? Foi por isso que sua mulher o largou.
Jogou aqueles pensamentos para longe, para aonde ele não pudesse ouvi-los.
Focou-se no mar.
Focou-se na canção mal-pronunciada que o remador tailandês entoava.
Focou-se no céu.
Focou-se na fome.
Focou-se...
O barco parou abruptamente, tirando Satoshi de suas reflexões internas levando-o a um outro nível completo de assombração.
Tão rápido quanto a ilha havia despontado do mar, haviam chegado nela.
O tailandês recusou-se a chegar perto da ilha, murmurando alguma tolice supersticiosa que ele simplesmente ignorou, aceitando as negações do homenzinho.
Desceu do barco carregando suas coisas - pouco além de uma mochila com comida, lanterna, saco de dormir, celular (sem sinal, naquele lugar), máquina fotográfica, um bloco de notas e uma caneta. Aquela caneta de ouro, de tinta recarregável, que ganhara do pai quando fizera 18 anos.
"Eu sei que é pouco, e que você merece mais", dissera-lhe, "Mas é muito importante que tenha essa caneta, filho, pois foi com ela que construí minha carreira". O pai fora um jornalista importante, que trabalhara num jornal de Tóquio relativamente influente por anos, até ter um ataque cardíaco e morrer tragicamente. Fazia vinte anos que o pai morrera, e Satoshi ainda sentia falta dele.
De qualquer forma, combinou com o tailandês - que, desconfiava, devia ser ilegal - o horário em que chegaria (bem cedo pela manhã, pouco depois do sol nascer).
Ficou ainda na praia, observando o barquinho desaparecer entre as águas antes de se virar e encarar de frente a carcaça da ilha.
Prédios por todo lado, ruas abandonadas. Pedaços de papel voando por aí, todos brancos e manchados pelo tempo, sem nada importante a acrescentar ao mundo exceto o fato de estarem todos mortos ali, e nada se fazia por lá havia anos.
Pegou a câmera pela alça e tirou uma foto da paisagem, pensando consigo mesmo que talvez tivesse realmente sido uma perda de tempo vir até aqui.
Todos disseram que eu estava louco, que seria perda de tempo e de dinheiro.
Continuou mesmo assim. Tinha sua carreira em jogo, senão sua própria vida.
Namu amida butsu, rezou, antes de seguir em frente.
Mais à frente haviam lojas, e ele parou um pouco para observar e tirar algumas fotos.
As lojas estavam vazias, logicamente, já que as pessoas agarraram o que puderam antes de fugir da ilha.
Fez uma nota mental de que, no meio de toda aquela bagunça, as pessoas acharam tempo para pegar cuecas novas e roubar vestidos.
Olhou mais um pouco.
Essa aqui era uma loja de sapatos, e ali na frente temos um restaurante. O que é aquilo? Um café?
Depois entraria numa delas para ver se achava algo de valor, algum registro escrito ou fotográfico do que acontecera ali.
ôSeguiu pela rua principal com o sol atrás de si, sentido ele se por minuto a minuto, sabendo que aquele tempo seria precioso.
Se quisesse se estabelecer, teria de fazê-lo antes que escurecesse, porque não tinha energia em parte alguma da ilha.
Quase que não notou quando pisou numa foto no chão.
Olhou para baixo e viu que a foto mostrava aquela mesma rua, num dia muito movimentado, talvez o primeiro dia da grande fuga que fez com que aquela ilha ficasse vazia.
Ela fora tirada de cima, da janela do prédio que estava à sua direita, e captava os movimentos apressados e exagerados das pessoas que fugiam.
Haviam japoneses e coreanos correndo de um lado para o outro. Crianças choravam, perdidas dos pais. Pessoas passavam sem nenhum escrúpulo, segurando quaisquer objetos que conseguissem arrancar das mãos dos aflitos donos das lojas.
Ele viu uma pessoa caída no chão.
Fora pisoteada e morta.
No meio de toda confusão, havia algo horrivelmente inumano no ar.
Melhor, havia algo humano demais.
Uma sensação palpável de medo e psicose, como se a fuga desesperada tivesse deixado a todos insanos.
Ele viu pessoas com ferimentos horríveis correndo, batendo, brigando, empurrando.
Viu sorrisos sangrentos de pessoas sem dentes.
Viu pessoas cujos olhos lembravam mais os de animais.
Guardou a foto no bolso, fazendo outra nota mental de procurar mais coisas no chão como aquela. Certamente haveria mais.
Com o sol já se pondo, e ele resolveu se virar e procurar o quarto donde aquela foto fora tirada.
Com esse objetivo em mão, pôs-se a empurrar as portas de madeira velha de um prédio de apartamentos.
Presumivelmente, aquelas eram as moradias dos coreanos durante a segunda guerra, então todos os quartos eram pequenos e mal-cheirosos, cheios de marcas nas paredes e no chão, um lugar onde muitos dividiam pouco, e em que mortes eram comuns e em massa.
Aqueles quartos, portanto, nunca pertenceram a ninguém, tampouco se conhecia a identidade da maior parte de seus habitantes. 
Como diria George Orwell, são despessoas, pensou, achando que a frase soava bem, e que seria uma boa ideia acrescentá-la no trabalho.
Depois de vinte minutos abrindo e fechando janelas, procurando a sala certa, achou aquela que tinha o ângulo perfeito da foto. Olhou no chão e viu que ele estava coberto de marcas de todo o tipo: de pés, de unhas, de tentativas de cravar no chão os acontecimentos de lá.
Ele olhou as paredes e viu símbolos incompreensíveis, mas então percebeu que ele simplesmente não conseguia ler coreano - especialmente aquelas palavras, tão trêmulas e desesperadas.
Abaixou-se e olhou debaixo da pobre cama de estrados.
Havia um pedaço de papel amassado, imprensado contra a parede, completamente dobrado.
Tirou-o com o maior cuidado e desdobrou-o.
Eram várias páginas de uma história escrita numa caligrafia comprimida, como se tivesse medo de acabar o papel - provavelmente tinha.
Aquele seria um documento importante. Mais importante ainda do que as fotos que tinha tirado - e a que tinha achado.
Resolver assentar-se naquele quarto, preparando-se para aquela leitura.
Abriu seu saco de dormir e acendeu uma lanterna, abrindo a primeira das páginas (eram cinco, frente e costa).
A história contava sobre um jovem médico coreano chamado Bae.
Escrevendo em japonês, Bae contava que havia sido capturado pelas forças japonesas em 1938, e fora levado num barco com mais duzentos outros coreanos para o Japão, de onde um grupo menor deles fora levado para aquela ilha para trabalhos forçados na mina de carvão.
"Achava que poderia escapar de qualquer lugar, mas perdi minha esperanças no momento em que vi a ilha em forma de navio de guerra", dizia.
A história continuava contando todos os maus tratos que ele havia sofrido, contando em detalhes as surras, as jornadas extensivas, a comida parca, ruim e gelada. Os aposentos apertados e superlotados.
"Peguei os papéis por aí, catando o lixo até achar algum que estivesse em branco. O carvão foi fácil, mas escrever nem tanto", contava, acrescentando que tinha de se esconder e escrever às cegas.
Satoshi passou horas lendo o relato de Bae, que destrinchava toda a sua história de dor, toda a sua saudade de casa, todo seu ódio pelo governo japonês, todo seu ódio cego contra si mesmo, contra os outros prisioneiros, contra a Coréia, contra tudo, contra nada.
Ele tinha ódio.
"Quando veio a bomba atômica, eu estava na mina, e escapei dos deslizamentos de terra por pouco, mas foi minha sorte, não estar exposto a ela.
"Mais de mil pessoas morreram naquele dia, e nenhum de nós foi o mesmo desde então".
Bae contou que permaneceu na ilha mesmo após a guerra pois não tinha aonde ir. Sua família provavelmente estava morta, e ele não tinha nenhum documento e nenhum dinheiro, por isso aceitou viver na ilha, após sua reconstrução, ganhando mal o suficiente para viver.
"E assim foi até o inferno começar", dizia.
Satoshi respirou fundo, preparando-se para a leitura.
"Por causa da nova demanda por petróleo, milhares de minas estavam fechando em todo país.
"Foi só uma questão de tempo para fecharem Hashima, apesar de haverem mais de cinco mil almas aqui", escreveu.
A debandada durou cinco dias cravados.
Em cinco dias, a ilha passou de super-populosa a abandonada.
Bae contava que muitos tinham morrido pisoteados, assassinados enquanto tentavam roubar uns dos outros.
Ele já estava no final do relato, quando ouviu um barulho vindo do lado de fora.
Satoshi se levantou e olhou pela janela.
A ilha estava completamente escura, numa noite sem lua e sem estrelas.
Ele pegou a lanterna e tentou procurar a fonte do barulho, mas só o que ele viu foi lixo e mais lixo.
Ouviu outro barulho, dessa vez de dentro do prédio, então resolveu descer e investigar.
Pegou a lanterna e os papéis, com a lanterna em mãos, e os papéis no bolso do casaco.
Desceu as escadas devagar, procurando por algo que fosse a fonte dos barulhos.
Apontou a lanterna para o chão e só que viu foi o de sempre.
De repente, ele começou a sentir-se observado, com olhos por todos os lados.
Correu até o andar térreo, e saiu para a rua, suando frio, apontando a lanterna para todos os lados, sem ver ninguém,
Por detrás dele, ouviu passos rápidos correndo, e virou-se na hora, mas só viu o relance de uma perna infantil num sapato azul, e não viu mais nada.
"Quem está aí?", gritou. "Eu vi você, não adianta tentar fingir que não!".
Ele está com muito frio e está aterrorizado.
Ele está com muito medo, e se sente desolado.
"QUEM ESTÁ AÍ?", berra, sem resposta.
Exceto que houve resposta, mas foi um raio forte que caiu num prédio centenas de metros adiante, iluminando tudo ao seu redor durante um único segundo.
Um segundo de luz, e já havia acabado, mas o que ele vira queimaria nas suas retinas para sempre.
Uma multidão de mortos encarava ele de frente, sem nenhuma expressão além da fria morte gelada e vazia. Cada um deles murmurando em silêncio histórias que ele podia ouvir claramente no ouvidos, mas que, no fundo, sabia que vinham da sua mente.
Aqueles mortos sussurravam nas sombras seu ódio, sussurravam palavras inaudíveis no vento, amaldiçoando tudo, matando tudo o que viam com aquele olhar cruel e tão horrivelmente despido de qualquer emoção.
Exceto o ódio.
Ele sentia o ódio, mas não era só ódio.
Era desespero.
Eram mortos esquecidos.
São despessoas, pensou, inutilmente.
Fileiras e fileiras de mortos sem nome, sem face, sem rumo nem norte. Mortos sem direito à própria morte.
E o segundo passou, mas e o terror que invadiu o coração de Satoshi ficou, e tomou conta do seu corpo, e ele começou a correr.
Corria no escuro sem direção, sem ver nada, sabendo que cedo ou tarde bateria numa parede e ficaria desacordado, e pouco ligando, desejando ficar desacordado, como um golpe de piedade, uma pequena benção naquele inferno recheado de desespero.
E Satoshi correu. Gritando a plenos pulmões sem nem saber que o fazia.
Então ele tropeça e cai, sentindo o peso do próprio corpo de maneira extremamente dolorosa.
Ao tropeçar, sua mente finalmente se desfaz do seu corpo.
Enquanto ele desliza para a terra da inconsciência, ele ouve uma voz estranhamente comum dizer nos seus ouvidos.
Namu amida butsu.


Satoshi acorda com os gritos mal-pronunciados do tailandês, com seu barquinho a uma cuidadosa distância da ilha.
Estava deitado na praia, com todos os músculos doloridos, sentindo um cansaço horrível.
Demorou ainda alguns segundos para que ele se lembrasse do que tinha acontecido na noite anterior, e, quando lembrou, foi como se estivesse vendo tudo de novo pela primeira vez.
Controlou-se a acenou de volta para o homenzinho, pensando nas suas coisas ainda no quarto.
Não iria lá nem por todo dinheiro do mundo.
No final, foi como lhe disseram: perda de dinheiro.
Teria que desmarcar o encontro.
Já no barco, ele resolve descansar, dando adeus à ilha.
Foca-se no mar.
Foca-se na canção mal-pronunciada que o tailandês entoava.
Foca-se no céu.
Foca-se na fome.
Foca-se...
Bae era budista?
Ele dá um salto com aquela realização, com tudo fazendo sentido na cabeça.
Bae viveu aqui.
Bae morreu aqui.
Bae tirou a foto e a jogou na multidão, esperando que alguém a encontrasse e percebesse os animais que eram.
Bae se jogou do prédio.
Bae morreu aqui.
Sentiu o bolso e viu que ainda tinha os papéis, e tirou eles do bolso, se xingando por não ter pegado a foto também, mas...
A foto estava no meio dos papéis, bem guardada.
Ele não lembrava de tê-la guardado, mas, se estava lá...
Você realmente acredita nisso?
Não, não acreditava.
De repente, ele percebeu o que tinha que fazer.
O único jeito de apaziguar os mortos de Gunkanjima.
Ele tirou o celular do bolso e olhou o relógio. Oito horas da manhã.
Chegaria bem a tempo do seu encontro com o editor.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Vou viajar \o/

Gente, eu só escrevo essa postagem nova para avisar a vocês da viagem que eu vou fazer.
Para quem não sabe, eu passei para Ciências da Computação na UFPI, e devo fazer minha inscrição na instituição na quinta e na sexta, o que significa viajar até teresina até amanhã.
Eu acabei de vir da rodoviária (papai queria pagar uma passagem de avião, mas foi tudo muito em cima da hora), e marquei minha viagem para amanhã, às 12h30min, na quarta-feira.
A viagem deve durar sete horas. Pouca coisa, né?
Pois é, mas é importante que eu vá.
Desejem-me sorte.
:)
até

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Amnésia



Tick, tack, fez o relógio – daqueles antigos, redondos, com dois sinos em cima.
Era para ser um som relaxante, ele achava. Para os outros, talvez — talvez até mesmo para o próprio Doutor Roberto ­­­—, mas para ele era um pesadelo.
Ele se sentou desconfortavelmente na cadeira do consultório, meio olhando para o doutor, meio olhando para o nada. O médico olhou para ele com um ar bondoso de quem tem o dia todo para ouvir o que ele tivesse que dizer, não interessava o quão idiota soasse. Tiago olhou de volta, mas desviou logo, localizando uma mancha na tinta que cobria as paredes do consultório e se focando nela.
Passaram-se alguns minutos, e o doutor resolveu fazer a primeira aproximação — calma e contidamente, sem pressa.
“Tiago, você tem estado conosco aqui há algum tempo, não é?”
Ele finalmente olha para ele, e murmura um “é...” sem muita força, o que permite que Roberto continue a se aproximar, como a um animal acuado no canto, sem querer assustá-lo.
“Pode me contar algo interessante que tenha acontecido nos últimos dias? Uma das enfermeiras me falou que você fez um desenho lindo dela. Você gosta de desenhar?”
Ele olhou para Roberto, com um novo interesse.
“Gosto... Gostava...”, diz.
“E por que perdeu o interesse em desenhar, Tiago?”, pergunta.
“É uma longa história, doutor...”
Ele se remexe na cadeira, mais desconfortável agora, mas sentindo uma vontade nova de contar ao médico o que não tinha contado a ninguém.
“Tem algo a ver com os seus pesadelos?”, diz o médico, “O motivo de você estar aqui conosco?”
“Sim”, diz ele.
“Pode contar para mim o que quiser, Tiago”, diz, “Estou aqui para te ouvir, sem julgar, nem comentar, só ouvir”.
“Tudo bem...”, e começa a contar sua história. O doutor aperta o botão da gravação escondido debaixo da mesa, para não intimidá-lo, preparando-se para ouvir o que ele tinha para contar.

“Eu e Marcos éramos melhores amigos”, começou, sentindo a força para falar, sabendo que, agora que começara, seria difícil parar. “Desde o ensino fundamental, na escola pública em que estudávamos.
“Sempre tivemos outros amigos e namoradas, claro, mas nossa relação era mais profunda do que mera amizade. Era mais profunda e mais diferente de qualquer relação que você conheça.
“Não me leve a mal, não era nada sexual — se foi isso que eu dei a entender —, era mais uma coisa de irmãos. Não de criação, ou de sangue. Irmãos de mente.
“Às vezes... Não sei como explicar. O senhor vai achar que é parte do que me trouxe para cá, mas não é, doutor, não é.
“Ou talvez até seja. Não sei mais. Eu juro que não sei mais”.
Ele cobre o rosto com uma das mãos, esfregando os olhos, e depois olha para o médico, com uma expressão que só podia ser entendida como desespero e desorientação — não eram a mesma coisa?
“Às vezes — lá vai — eu sabia de coisas que eu simplesmente não podia saber, antes de ele me contar. E ele também.
“Era como uma sincronia, entende? Não acontecia com outras pessoas — pelo menos eu não conseguia com mais ninguém —,  só entre nós dois.
“De qualquer forma, os anos passaram e nenhum de nós conseguiu entrar para a faculdade, ou arrumar empregos fixos, então passamos para uma vida de crimes pequenos, furtos em geral, nada muito sério.
“Passamos a pichar por aí. Éramos ambos muito bons, mas Marcos era melhor. Eu sempre sentia que as figuras que ele desenhava nos muros podiam simplesmente ganhar vida e sair por aí.
“Elas não eram vívidas, nem realistas, doutor, não pareciam mais fotografias do que pinturas a óleo. Mas sim, davam a impressão de estarem vivas”.
Ele suspirou, cobrindo mais uma vez o rosto com aquele gesto de cansaço, expondo sua expressão de desespero e desorientação e retomou a história, dessa vez dando um salto até acontecimentos de três anos antes, dois anos antes de ele entrar para o hospital psiquiátrico.
“Um dia ele me disse que teve uma visão num sonho de um desenho especial, que queria fazer no muro da nossa antiga escola, perto da praça onde tem aquele homem parado olhando o horizonte, encarando nada mais que prédios e mais prédios naquela direção, tão distante de realmente ver o horizonte.
“Não acontecia sempre, mas dessa vez eu vi na minha cabeça a imagem perfeitamente. Era uma pessoa sorrindo, de olhos abertos, olhando para o espectador.
“Digo pessoa, doutor, porque a figura não tinha nem sexo, nem idade. Talvez nem fosse uma pessoa, afinal de contas.
“A princípio”, diz, passando a mão nos cabelos a apoiando os cotovelos nos joelhos, se aproximando do médico, “não achei nada de mais na figura. Mas Marcos queria fazê-la, então eu deixei.
“Se arrependimento matasse, doutor, eu já teria morrido mais vezes do que se pode contar. Às vezes sonho com aquele momento, e eu sinto uma vontade enorme de gritar ‘Não! Pare! Não faça isso!’. Mas já é tarde demais, doutor. Tarde demais.
“Na noite seguinte, estávamos na frente da escola, perto de uma praça vazia. Ninguém a vista em nenhuma direção. Começamos a desenhar.
“Pegamos as tintas e preparamos a parede. Na primeira passada de tinta, eu senti que algo diferente estava no ar. Um formigamento no ar, sabe? Acho que não. Nunca vou conseguir descrever aquela situação para ninguém.
“Ele quis começar pelo sorriso. Eu achei estranho ele começar por aquela parte, sendo que nem tínhamos feito o rosto ainda, mas, mais uma vez, eu deixei que ele fizesse o que queria. O desenho era dele, afinal.
“Duas horas se passaram, e já estávamos desenhando o resto do rosto, exceto os olhos. ‘Os olhos a gente faz por último, viu?’, ele disse, e eu aceitei.
“Mas havia algo de indevidamente estranho naquele desenho. A cada segundo que passava, ele ia mudando. Eu sentia aquele sorriso ficando maior e maior, mais e mais aberto, revelando mais e mais dentes, mais e mais, mais e mais, mais e mais...”
Ele estava tremendo visivelmente, com medo da visão. Dr. Roberto estava ficando um pouco receoso com aquela história. Começava a desejar que a hora que eles tinham acabasse. Olhou para o relógio discretamente — tick, tack —, e viu que faltavam apenas dez minutos para que ele pudesse mandar Tiago embora e receitar uma boa dose de remédios para dormir — talvez ele até pegasse alguns para si mesmo, mas mantinha a discrição.
“Tudo bem, tudo bem. Sem pressa”, diz, “Acha que consegue continuar?”
Ele suspira, mas balança a cabeça afirmativamente.
“Eu...”, pigarreia, “Eu continuei até certo ponto, quando íamos começar os olhos. Mas então eu decidi não continuar. Não queria que aquela coisa pudesse me ver. A idéia me fez, e ainda faz, ficar com medo.
“Ele discutiu comigo e brigou. Dizia que, agora que tinha começado, teria que terminar, que não aceitaria que eu simplesmente abandonasse o projeto pela metade.
“Eu olhei para o relógio, mas ele tinha parado de funcionar. Devia ser umas quatro da manhã, mas achava que podia chegar em casa antes de amanhecer”.
Ele afundou na cadeira, olhando o médico nos olhos.
“Nunca mais vi Marcos.
“Lembro de ele ter ficado lá para completar o desenho, mas não sei o que aconteceu com ele. Nem a polícia.
“Procuraram ele por meses, sabia? Não acharam nada. Ele havia sumido e deixado todas as latas de tinta na frente da imagem.
“Passei pela praça um dia, a caminho de uma lanchonete que aparentemente estava empregando, e vi o desenho. Algo nele ficava me chamando, e eu senti que talvez finalmente pudesse resolver aquilo, então eu me desviei do caminho para aquela figura.
“Ao chegar lá, doutor...”
Não termina. Respira fundo e contém as lágrimas. Recomeça.
“Ela estava completa, pelo menos à primeira vista. Tinha dois olhos arregalados no que podia ser tanto surpresa, quanto sarcasmo, quanto desespero, quanto assassínio. Você escolhe, doutor. Eu vi tudo aquilo naqueles olhos maníacos.
“O sorriso não era mais um sorriso. Era uma boca aberta numa risada constante. Era uma figura que gargalhava de olhos abertos, doutor. Olhos bem abertos, zombando de nós, fascinando-nos naquele olhar assassino, nos fazendo — ah, que ironia, não? Enlouquecer, doutor. Ela nos fazia enlouquecer, caso fitássemos o fundo dos olhos dela.
“Mas não estava completa. Eu sabia disso. Vi assim que cheguei mais perto. Faltava o acabamento, o que fazia o desenho durar, e ficar bem definido. Esse não tinha nada daquilo. Eu sabia que ele não duraria quinze anos naquela parede, mas sabia que aquela figura tinha seus próprios métodos de manter-se viva, não é? Não se chega nesse nível sem saber uma ou duas coisas sobre sobrevivência.
“Desde aquele dia, eu comecei a sonhar com ela.
“Ela está em todo lugar, e me chama. Zomba de mim e me chama. Éramos uma dupla, não? Quer que eu a termine. Quer que sua existência nesse mundo seja indelével, quer finalmente cumprir seu projeto de tantos anos – milênios, se quer saber a minha opinião.
“Uma vez eu fui. Foi mais ou menos um mês depois de vê-la na praça. Levei minhas tintas, e estava pronto para pôr um fim naquela coisa toda.
“Estava pronto para atender seu chamado, entende? Estava pronto para terminar a porra do desenho e que se dane o mundo...
“Mas, quando eu cheguei lá, e olhei a figura no fundo daqueles olhos cheios de vida e perfídia, e vi o que tinha feito com Marcos. Na verdade, não me lembro do que vi naquele dia. Devo ter bloqueado da memória, doutor, mas, por favor, não tente me fazer lembrar. Eu não quero lembrar”.
Dr. Roberto estava inquieto e suando frio naquele terno. Olhou para o relógio. Três minutos? Como? Estavam lá há pelo menos quatro horas! Por que o tempo estava passando tão devagar? Ele estava dividido. Boa parte dele queria expulsar Tiago do consultório e tirá-lo do hospital psiquiátrico para sempre, nunca mais vê-lo. Outra parte, igualmente forte, não conseguia resistir à tentação de saber o final.
“Eu usei toda a minha força, e consegui pegar a tinta preta. Pintei por cima da figura um grande bloco preto, e continuei até esvaziar a lata. Depois fui embora, correndo.
“No dia seguinte, doutor, eu resolvi passar na praça e ver a reação das pessoas ao verem aquela figura horrível coberta pelo bloco preto. Na primeira vez que fui lá, as pessoas sempre desviavam um pouco, e evitavam o muro em que ela estava. Na verdade, algumas pessoas de carro simplesmente não passavam por lá. Preferiam dar a volta no quarteirão para voltar ao cominho original.
“Pois bem, ao chegar lá, você não conseguiria imaginar a minha surpresa: ela estava de volta. Como se nada tivesse acontecido, o desenho ainda estava na parede.
“Foi a primeira vez que notei que seus olhos seguiam você aonde quer que você fosse. Ela estava olhando diretamente para mim, na sua risada ensandecida, desprezando meus esforços.
“Eu corri, doutor. Eu corri.
“Não saí da cama o dia todo.
“Comecei a ver a imagem em todo lugar. Em cada poça d’água, em cada mancha, em casa folhagem, em cada nuvem. Ela estava em todo lugar, me olhando, me encarando, louca para me devorar se eu olhasse de volta”.
Ele estava chorando e não percebia. Nem olhava mais para o médico, mas sim encarava a parede branca detrás dele. O médico olhou para o relógio de novo. Um minuto. Graças a deus.
“Eu passei quase um mês sem dormir depois daquilo. Fiquei viciado em drogas que me dessem energia, qualquer coisa que me tirasse o sono, que me impedisse de dormir. Nunca usei drogas que me alucinassem. Tenho certeza de que a única coisa que veria seria ela, a figura.
“O resto da história você sabe. Passei um ano sofrendo com aquelas visões, sem nem dormir, nunca com algum emprego. Foi quando tive meu ataque que vocês me levaram para cá.
“Estava na rua, perto da escola, perto dela, e comecei a ouvir a voz da criatura. Não sei por que fui lá, acho que ela me arrastou inconsciente para lá. Naqueles tempos, eu andava sem rumo, quase mendigo. Ela ria horrendamente de mim. Ria, ria, ria, como se o meu ataque de pânico fosse a coisa mais engraçada do mundo.
“Eu comecei a gritar e babar. Caí no chão, chorando e gritando para que ela parasse. Não me lembro de mais nada antes de acordar amarrado a uma maca desse hospital”.
Ele olha para o médico, que simplesmente o olha de volta, sem saber o que dizer.
Ele olha para o relógio e vê que o tempo dele finalmente acabou.
“Tiago”, diz, se levantando da cadeira, “infelizmente nossa hora expirou. Na próxima sessão nós vamos falar mais sobre o incidente, pode ser?”.
“Pode, acho...”, diz o outro, “Mas eu não sei. Eu tenho começado a esquecer alguns detalhes. Acho que tem alguém do meu lado nessa história, apagando minha memória pouco a pouco. Gosto de pensar que um dia eu não vou nem lembrar mais de nada.
“Infelizmente, acho que isso também significa esquecer do Marcos”.
Vai embora um tempo depois, deixando o médico sozinho com seus pensamentos.
Era lógico que tudo era um delírio dele, não é? Todo aquele relato era surreal demais para ser verdade. Não era?
Certamente, ele não encontraria nada caso fosse até a praça onde tem a estátua de um homem olhando o horizonte. Não haveria nenhuma figura enlouquecida na parede.
Haveria uma escola, e provavelmente estaria toda pichada. Mas não haveria aquilo.
Haveria?
Doutor Roberto brincou com aquela pergunta por alguns momentos.
Não era a razão que o fazia pensar assim. Era o medo.
Medo de que houvesse realmente algo lá.
Se fosse lá, tinha certeza de que encontraria nada.
E ele foi.

Semanas depois, Tiago senta na sua cama, se sentindo meio mal.
O jornal matinal está na sua cabeceira.
Ele olha a primeira página, com espanto.
Na primeira página, uma matéria sobre o Dr. Roberto.
A reportagem dizia que ele tinha ido a uma escola velha e ateado fogo ao lugar, deixando-se morrer lá, sem deixar nenhum bilhete de suicídio nem nada.
Tiago olha com uma expressão confusa para a foto das ruínas.
O fogo queimou por 13 horas antes de apagar, lê. Ele nota os muros destruídos e sente um impulso de felicidade enorme dentro dele, mas não sabe por quê.
Ele joga o jornal de lado, sem entender o porquê daquilo tudo.
Ele não reconheceu nem a praça com a estátua do homem olhando o horizonte.
Tiago já não lembrava.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

O post-it amarelo

Essa é uma história que eu li há muito tempo.
Ela não é de obra minha, mas eu vou tentar colocar detalhes que a melhorem e a promovam de "historinha de terror que se lê em e-mails" a um conto relativamente decente - pelo menos eu acho que posso.
Aproveitem.
(O título é meu, não lembro o original.)

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"Não vai mesmo para a festa?", pergunta Adriana.
A colega de quarto suspira sem dizer muita coisa. Ana olha para um lado, olha para outro.
Não tem nada ali interessante, mas tampouco havia na festa, para ela.
"Vou ficar por aqui mesmo", diz, "tenho pilhas de trabalho para fazer". Ela diz isso com uma certa incerteza no semblante, como se nem ela acreditasse naquilo.
Adriana não sabia qual era o problema dela, mas estava tudo bem: conversariam pela manhã.
Por ora, ela só queria ir para a festa.

A festa tinha sido muito boa.
Adriana estava bêbada, e completamente perdida na noite.
Ela certamente não notava, mas estava descalça - os saltos dela ainda deviam estar sob o balcão do bar na boate.
E ela nem ligava.
Despediu-se dos amigos, e disse que podia muito bem chegar ao seu destino em paz.
Pois bem, ela começou a andar, pouco a pouco desejando mais a sua cama, mas sempre em frente, com uma marcação no mapa da sua cabeça onde ficava o dormitório das mulheres, e nele a porta atrás de qual estaria sua querida e amada cama - daria tudo no mundo para chegar lá.

Ao chegar no quarto, bateu à porta mas não teve resposta.
Decidiu então bater mais forte (estava sem as chaves), mas então descobriu que a porta não estava trancada, e entrou devagar no quarto escuro.
Ela estendeu a mão ao interruptor, mas pensou duas vezes.
Ela deve ter ido dormir, melhor não acender a luz.
Adriana então chapinhou pelo quarto em busca de sua cama.
Quando a achou, caiu nela sem reservas e dormiu um sono sem sonhos.

Ela acordou com dor de cabeça, e aquele gosto indistinto e seco de ressaca, mas decidiu se levantar.
Foi quando ela olhou a cama de Ana.
Na cama, Ana jazia numa poça sangrenta, com várias marcas de faca por todo o corpo.
Ela senta desconsertada e começa a gritar de medo.
É quando ela percebe um post-it amarelo na testa ensanguentada da amiga morta.
"Não está feliz por não ter acendido a luz?"

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Uma breve observação

Amontoam-se as mentiras
mentiras, mentiras, mentiras,
No palácio do crepúsculo,
manhã, tarde e noite: mentiras
E as ordas dos desesperados
pedintes dos pedintes, cegos entre cegos
Não nascem, não morrem, não vivem
existem? existem? existem?
Por estradas tortas e puídas de trânsito
mentem todos, sem saber quem são
Entre os vivos, rejeitados dos mortos
entre tudo e entre o nada
Com seus ombros caídos e suas feições carcomidas
mentem, mentem, mentem
Sem saber o que é verdade