sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Lenda Urbana

Conta-se por aí, em becos velhos, por bocas sujas, dentes amarelados, entre cigarros e cerveja, em tons lentos, calmos e mortais, sobre a história da Mulher Vermelha.
Não é uma lenda muito forte, isso é verdade, pois quem a vê uma vez quase nunca conta, tal é o horror do encontro. Os que falam, porém, são feitos loucos, ou viram catatônicos - a encarar o fundo da sala até chegar a ver por dentro da parede, naquela escuridão imensamente pequena, aonde tudo se perde e nada significa coisa alguma.
Diz-se que nada pode explicar a aparição da mulher.
Ela vem quando quer.
Contam-se vários casos, depende daonde você ouve a história, mas o mais famoso é o de Anita.
Anita era uma garota que, por fora, pareceria comum, mas, por dentro, ela tinha traumas maiores do que sua estatura possa transparecer.
Anita nunca conheceu o pai, pois ele deixou ela e a mãe antes dela nascer. "Foi arranjar emprego na mina, sabe?", dizia a mãe, sempre que o assunto surgia.
"O dinheiro já deve estar chegando...", dizia, e repetia aquele mantra de auto-enganação o tempo todo.
Vinte anos passam e ela se vê na faculdade, vendo o mundo, sustentando o ódio contra o pai que nunca vira. Aquele ódio cresceu e se transformou num ódio a todos os homens que conhecia, levando Anita a ter uma série de namorados em pouco tempo. Assim que um chegava, ela descobria mais e mais falhas nele, e fazia questão de apontá-las e destacá-las o tempo todo até que o coitado lhe largasse.
Anita descobriu que estava grávida naquele dia.
Passou a tarde trancada no dormitório da faculdade, chorando, sem saber o que fazer. O pai não queria nem saber dela - tinha deixado bem claro, ao deixá-la, "eu te odeio, sua puta, e eu me enojo de ter transado com você!". Ela também não tinha gostado muito - a idéia daquilo fazia ela se arrepiar de nojo -, mas ele insistiu. Fora tão insípida na cama como seria um peixe morto, e sabia disso.
Tinha feito de propósito.
Mas agora ela sentava na cama, com cinco testes de gravidez positivos no chão, o rosto inchado de tanto chorar.
Foi quando ela decidiu que não iria mais ligar para nada, iria sair e beber até não sentir mais o próprio cansaço, até não sentir mais Anita.


À noite, saiu para um bar no campus, sentou-se sozinha, pediu uma garrafa de uísque e metódicamente começou a beber.
Passaram-se alguma horas, chega o ex-namorado (pai da criança) e seus amigos, que a notam no momento em que entram no bar.
"Oooolha, quem aparece aqui!", diz um.
"Olha só quem resolve mostrar alguma emoção!", grita o ex, "'Tava chorando, princesinha?".
Ela não levanta os olhos da garrafa de uísque pela metade. Ele não está aqui, ele não está aqui.
"Responde, porra!", grita outro, mas ela não diz nada.
"Talvez ela só funcione a álcool", diz um terceiro, e joga um copo cheio de cerveja nela, rindo do próprio feito.
Ela fica encharcada da cerveja, e resolve não aguentar mais. Pega a garrafa de uísque e se levanta, indo para a porta, mas o ex-namorado a interrompe violentamente.
"Você não é ninguém, 'tá ouvindo? NINGUÉM!", grita, segurando os ombros dela e sacudindo-a com força.
"Some daqui, vadia!", grita um deles, e os outros gritam o mesmo, e ela vai embora.


A noite ia alta quando Anita vagava pelo campus vazio, segurando sua garrafa de uísque. Ainda ouvia os gritos do bar, mas eles iam ficando mais fracos à medida em que se distanciava deles.
Andou sem ver por onde até onde o uísque a pode levar, mas uma hora a garrafa acabou, e ela se sentou no chão, sem ver aonde, chorando.
Ela percebeu uma presença no ar, e levantou os olhos para ver a figura que se prostrava à sua frente.
Era um contorno que sugeria uma mulher toda de vermelho, com um lenço que escondia-lhe o rosto.
Ela tentou olhar para os seus pés, mas, dos joelhos para baixo, era tudo muito borrado para ver alguma coisa. Estou muito bêbada, pensou.
A mulher falou, numa voz rasgante, de gargantas secas, "Tem algum problema, minha criança?".
Anita só olhou para ela, depois para a garrafa de uísque vazia, e respondeu.
Contou-lhe seus problemas: sua mãe, o pai, o ex-namorado e seus amigos e o bebê.
Ou pelo menos pensou ter falado, àquela altura, ela estava tão fora de si que poderia ter somente pensado as palavras sem nunca dizê-las.
Mas a mulher responde, mesmo assim.
"Eu posso... Ajudar você", diz.
"Por um pequeno preço, você pode viver sem nenhum problema sequer...", e rompe-se numa risada restrita, como se o corpo não soubesse que estava rindo. A mulher de rosto coberto inclinava-se criando uma aura vermelha que pouco a pouco cobria a garota, e ela repete, como se concordando consigo mesma e admirando aquela oferta.
"Sim... Um pequeno preço...", diz ela.
"Qualquer... Qualquer coisa", diz a garota sonolenta, sem nem se dar conta de estar caindo no sono.
"Pois bem", responde a mulher.
Desaparece.


Anita acordou com sua cama molhada de sangue. Havia perdido o bebê durante a noite.
Sua colega de quarto chega e diz "não usou absorventes hoje?", mas o que quer dizer mesmo flutua até a superfície e ela trata de dizê-lo.
"Seu ex-namorado e os amigos... Bem, eles beberam muito durante a noite e saíram de carro", Eles estavam me procurando, pensa, mas não diz, porque não tem como justificar como ela sabe daquilo: ela só sabe.
"Oh, foi horrível, o carro deles bateu num caminhão e ele virou", ela diz, enquanto Anita tenta engolir a informação, "O motorista do caminhão viveu, mas eles...", não completa, mas Anita sabe exatamente o que aconteceu.
Eles foram procurá-la para pedir desculpas pelo o que eles fizeram, mas não encontraram em lugar nenhum do campus, então desitiram. Na volta, eles viram um vulto vermelho na estrada, tentaram desviar mas bateram no caminhão. Foram esmagados sem a menor chance de escapar.
Anita senta na cama suja de sangue, tentando descobrir o que viria a seguir.
De repente, seu celular toca. É a mãe.
Ela está tão feliz. As cartas finalmente chegaram, ela dizia, e tinha o dinheiro que o pai tinha ganhado na mina. Ela não sabia aonde ele estava, mas estava certa de que ele mandaria outras.
Mas Anita sabia o que acontecera.
Como mágica, ela via na cabeça o pai, velho, levantar-se de sua cama, sem olhar para esposa nem nada, sair de casa de pijamas, pegar a arma na gaveta, que guardava por segurança, viajar de carro por quilômetros até a cidade mais próxima, sacar dinheiro e enviar para a mãe.
E depois, claro, enfiar uma bala na própria cabeça.
Desligou o telefone e sentou na cama, admitindo o absurdo na cabeça. Foi aquela mulher de vermelho!, pensa, mas o que ela teria negociado em troca daqueles favores macabros?
E então, ela soube.


Anita fugiu de casa, de tudo e de todos.
Viveu como indigente por anos, afogando um buraco dentro de si com a bebida, mas sabia que nada adiantaria.
Quando a lembrança começou a enlouquecê-la, o município a mandou para um hospital psiquiátrico, aonde ela tentou se matar mais de quinze vezes, sem nunca conseguir.
Ela sabia, claro, que só morreria quando conviesse à Mulher Vermelha. Ela viria e lhe deixaria olhar os horrores escondidos debaixo do véu, e ela morreria, finalmente.
Mas, quando morresse, não iria nem para o céu, nem para o inferno.
Vagaria eternamente na sombra da Mulher Vermelha, junto com todos os outros tolos que obtiveram tudo o que desejavam.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

"Independentemente do que diga o seu confiável Timex" - Posfácio

Sempre quis fazer algo sobre esse assunto.
Não acredito nessa coisa de sobrenatural - assuntos não-resolvidos, aparições, possessões, et cetera -, mas acho que, para um contista amador como eu, o assunto é fascinante.
Espero não ter entediado vocês com a longa narrativa do velho - propositadamente sem nome -, que desdobra a história da vida dele e de sua esposa juntos até o trágico acontecimento (que de fato aconteceu) do final do verão de 1954.
Gosto de pensar que ela era um espírito à moda moderna, completamente ignorante à própria morte, sem um motivo para viver, com um monte de problemas internos como a ausência da própria memória.
Talvez o filho dela simplesmente já soubesse onde ela andava, e soubesse a mentira a que ela incubiu sua pós-vida - uma fantasia sem sentido de ser uma espiã, uma ladra, uma assassina, qualquer coisa.
Talvez ele já a tivesse visto por ai.
Ou talvez ele simplesmente soubesse que ela estaria aonde seu corpo estivesse.
Porquê ele pensou em trazer seu corpo está completamente fora do meu alcance enquanto escritor, e espero que cada leitor compreenda que nem mesmo eu tenho a resposta para todas as perguntas.
Vamos ficar com a explicação mais simples, que - eu acho - é a mais concreta.
Ele, fazendo um favor ao seu pai velho e doente, aceitou levar seu cadáver por aí na esperança de encontrar o fantasma da mãe, sem que ela soubesse que estava sendo levada não para cumprir um assassinato, para roubar um banco, espionar um grande empresário metido em problemas com a lei, mas para encontrar, no fundo de todas aquelas mentiras fantasiosas e desesperadas, uma verdade: já estava morta havia anos.
Pensando bem... Talvez não seja assim tão simples.
Eu gosto de um quê não-explicado no final das histórias. Deixa espaço para a imaginação do leitor.
Dá para perceber isso em praticamente cada um dos meus contos.
Quem poderá dizer que, em "O Porto e a Luz da Lua", David não simplesmente afogou toda a família enquanto ouvia na cabeça uma música que ouvira anos antes, num filme, na televisão, ou numa peça, e depois enlouquecera, inventando para si mesmo a história do homem no bote, que esperava-o para seu grand finale?
Afinal de contas, para qualquer pessoa fora dali, o que aconteceu foi um homem louco, suspeito de assassinato, que volta à cena do crime e se mata também.
Soa bastante convincente, não é?
Mas pode ser que tudo aquilo realmente tenha acontecido.
Não se trata de me esqecer dos detalhes, e ignorá-los completamente, não querendo sequer clicar em "editar" para encaixá-los.
Trata-se de que nem tudo na vida será explicado.
No final de "A Revolução dos Bichos", Orwell não gasta nem uma linha sequer explicando o que os bichos [SPOILERS] farão depois de verem homem e porco lutando entre si, sem poder identificar quem é quem [FIM DOS SPOILERS].
Por quê? Porque não é necessário. O motivo já foi mostrado, e a história acabou, ponto final.
No mesmo livro, o autor também não se dá o trabalho de dizer se [SPOILERS] toda aquela maldade e perfídia de que Bola-de-Neve fora acusado eram verdade - de derrubar o moinho até convencer algum dos donos das duas fazendas vizinhas a atacar a "Fazenda dos Animais"[FIM DOS SPOILERS].
Outro assunto interessante é sobre a citação de Stephen King estar errada.
Eu sei que o certo é "A lua está baixa e a hora é nenhuma", mas, quando a citação me ocorreu, por algum motivo que TAMBÉM está além dos meus poderes, eu pensei em "agora é noite e a hora é nenhuma".
Trata-se de uma inspiração adicional ao trecho original. Leitores mais astutos podem se perguntar "então porque você não mudou?". Ora, eu tinha me inspirado nessa frase, e, mesmo que Stephen King não a tenha escrito, eu ainda a atribuo a ele, mas ela tem um pouco de mim, pois metade dela veio da minha própria mente inquieta.
Concluindo, eu não quero receber comentários me perguntando sobre isso ou aquilo, sobre o que fez Cole, ao se ver órfão, ou sobre o que ele fez com o cadáver. Enterrou? Devolveu ao hospital? Colocou-o no seu armário e começou a cultuá-lo como uma espécie de ligação satânica entre o plano terreno e o plano celeste?
Sei lá...
Sei que, enquanto houverem quartas-feiras, eu vou continuar escrevendo - sendo lido ou não, até que alguém descubra meus cadernos cheios de rabiscos de cálculos e paragráfos soltos de contos que ainda não tomaram forma e resolva publicá-los (ou queimá-los).
Esperam que tenham gostado do conto (um bem longo, tenho de admitir).

"Independentemente do que diga o seu confiável Timex" - Parte Cinco e Final

"Não me leve a mal", disse o velho, naquela sala escura, "eu era um bom marido, e gosto de pensar que também fui um bom pai.
"Mas aquela moça... Ela precisava tanto de mim. Era como se eu fosse seu único porto seguro na vida.
"Eu sentia o que ela queria, mas não conseguia me afastar, porque ela era bonita, irreverente, inteligente, à frente de seu tempo, e, caramba! Eu gostava daquilo".
A mulher olhou para ele fixamente, e talvez nem tenha piscado, naqueles vinte segundos de fala. Estava hipnotizada por aquele contar de história; ou melhor, estava paralizada de medo.
Sentia as entranhas se revirarem, se afogarem gritarem. Sentia o coração batendo muito forte - sentia cada sístole e cada diástole nas pontas dos dedos, caídos no seu colo.
O subconsciente detectou um barulho vindo do lado de fora, mas disto a Charlotte acordada não tomou conta, somente percebeu que algo havia mudado quando o velho já estava a terminar seu conto.
"Estávamos no nosso quarto - meu e da minha esposa -, e sentávamos na cama, conversando. "Charlie tinha saído com as amigas, e eu já havia voltado para casa, pouco ligando para o que elas iriam fazer - esses momentos eram aqueles em que nós nos encontrávamos.
"'Tenho estado mais feliz, nesses dias', ela disse, ao que eu sorri e não falei nada, 'Nossas conversas me ajudam a suportar o meu marido, a vizinhança, a própria vida'. Eu sentia o mesmo, mas eu ainda amava minha esposa.
"Eu era jovem e tolo, e não percebi o erro que cometia ao vê-la inclinar-se pela cama e correspondê-la, inclinando-me também".
Fez-se silêncio por alguns segundos, até ele voltar a falar.
"Fizemos amor naquela cama como eu fazia a minha mulher, e fizemos duas vezes, maravilhados pela nossa capacidade primal de reproduzirmo-nos, sorrindo feito adolescentes".
"Ela entrou no começo da terceira, e o inferno aconteceu.
"Eu gritei os clichês, o discurso 'não é isso que você pensa', o discurso 'eu posso explicar', o discurso 'por favor, eu te amo!'".
O velhou soltou outra bufada gutural do fundo da garganta, ascendendo ao ar aquele cheiro podre de morte e bolor que vinha dele.
"E eu amava, mas fui idiota o bastante para deixá-la ir.
"Na mesma noite, os William saíram da vizinhança, mas não juntos. Anne foi para um hotel, daonde ela me ligou e me convidou a visitar, mas eu nunca fui. Não sei o que se fez do marido.
"Eu saí de casa envergonhado, fui sozinho a um motel de beira de estrada, onde chorei até dormir".
Charlotte ainda olhava para ele com uma sensação horrivel corroendo-lhe as pernas, as entranhas e a garganta.
No fundo de sua mente, uma porta se abria lentamente, deixando algo sair, uma luz estranha, por uma fresta, um canto não-explorado de sua mente.
Dessa vez, não era só a Charlotte pequena que tinha medo do sairia de lá. A Charlotte grande estava terrivelmente assustada.
"No dia seguinte, eu acordei no meu horário de sempre, disposto a consertar a besteira que tinha feito.
"Fui até a nossa casa, e deixei um bilhete, escrito e re-escrito tantas vezes até que saísse certo, e então fui ao trabalho".
O velho suspirou, sentindo o trabalho por vir.
"Foi durante o meu almoço que o verão de 54 entrou para a história.
"Todos os rádios repetiam a mesma coisa: 'Todos os moradores das áreas costeiras abriguem-se o mais cedo possível. O Governo declarou que as seguintes áreas serão afetadas [...]'.
"Era o Hazel".
Ele respirou fundo de novo, puxando mais ar do que nunca para seus pulmões velhos.
"O Hazel já tinha devastado o Canadá, mas ninguém esperava ele aqui!
"Ao ouvir o nome do nosso bairro eu corri para casa, mas eu não tinha meu carro próprio, então tive que ir por transportes públicos".
Uma pausa.
"O ônibus parou de rodar a poucas quadras de lá, e deu meia-volta, com medo do furacão, que já fazia sua presença ser notada.
"Os ventos horríveis, a chuva devastadora, tudo somava-se a um pesadelo sem fim.
"Corri até a casa. Estava tudo alagado, mas eu consegui entrar na casa sem cair na água.
"'Será que ela está bem?', 'Será que ela recebeu meu bilhete e saiu daqui?', 'Será que ela está abrigada?' foram perguntas que gritavam por respostas, perguntas que só o tempo responderia.
"Mas é claro que ela não ouviu o rádio!, pensei, Ela devia estar ouvindo música quando os anúncios sairam!, e eu simplesmente soube aonde você estava".
O velho engasgou, e Charlotte pulou para trás ao uso do pronome.
"E-eu?", disse, trêmula, "Não, não... Isso não é possível, eu sou muito mais nova do que..."
Mas era verdade.
Era verdade e ela sabia.
Charlotte - ou Charlie, na escola - sabia.
Ouviu-se contar o resto da história sem nem se dar conta, observando atônita enquanto a porta nos recônditos da sua mente se escancarava.
"Eu tinha chorado o dia todo, e, quando Joy Spring começara a tocar no rádio, eu desabei.
"Dormi ouvindo a música, na cama, pensando em você...".
O velho continuou.
"Cheguei e encontrei você na cama, gritei para que acordasse, disse que vinha aí o furacão que tinha destruído o Canadá, mas você não ouviu. Gritou que era um traidor, um mentiroso, um maldito que merecia morrer."
"E você saiu correndo, procurando Cole... Pegou ele no colo e gritou para que eu viesse também, mas eu não quis vir... Fiquei presa pela raiva que me tomava.
"Então o furacão apareceu, e qualquer discussão foi inútil".
Eles dois se encaravam, e o velho concluiu.
"Dos 357 prédios e casas em Long Beach, só cinco sobreviveram ao furacão. Nossa casa não foi uma delas.
"Lembro-me de ter me arrastado pelos escombros com Cole nos braços, que chorava, chorava e chorava, e eu procurava por você, mas você tinha desaparecido.
"Até agora".
Ela caiu para trás, tentando engolir tudo aquilo.
"Mas tarde, naquele dia, ouvi que o hotel em que Anne estava também foi destruído.
"No dia seguinte, procurando pelo seu nome da lista dos desaparecidos, encontrei o dela também, e soube imediatamente que ela tinha morrido.
"Assim como você".
Charlotte chorava copiosamente. Lembrava-se de tudo, mas nada explicava aquela situação.
"Fizemos um enterro simbólico, sem cadáver.
"Cole cresceu e eu me mudei para outro lugar, com menos memórias.
"Quando ele entrou na faculdade, eu me mudei para cá, e fiquei esperando por você, esses anos todos, esperando.
"Você por acaso se lembra do que havia no bilhete?"
Ela fungou um pouco e olhou para ele. Tirou então o papel que levava no bolso, e viu que ele estava branco, amassado e meio molhado, mas legível.
Nele, o velho tinha escrito:
"Eu te amo, e sempre te amarei.
"Por favor, perdoe-me. Eu sei que nunca vou ser bom o suficiente para te merecer, mas eu quero pelo menos tentar, pois é melhor tentar e fracassar do que nunca ter tentado. Vou fazer de tudo para recompensá-la.
"Encontre-me na praça aonde nos conhecemos, para podermos conversar melhor".
"É... aqui?", ela perguntou.
"Sim. Não sobrou muito dela, depois do furacão, então, na reconstrução, decidiram construir esses prédios aqui, fecharam a rua e a praça virou um monte de casa numa ladeira.
"Comprei essa assim que saiu. Era o meu jeito de manter minha promessa, porque te esperei, Charlie, te esperei".
"E eu vim..."
"Mãe, está na hora de ir", disse o homem que havia chegado minutos antes daquela revelação.
Ela se virou assustada e olhou. Era ele, o homem que dirigia a ambulância. Cole. E viu que na testa dele havia apenas uma cicatriz, uma marca de sua sobrevivência ao Hazel.
O velho se levantou, e Charlotte foi com ele, dizendo "Eu te perdôo, por tudo que fizeste, perdôo. Perdôo porque te amo", e beijou-lhe na boca, como uma fantasma beija um velho.
Mas, para eles, foi como se fossem jovens de novo, cheios de energia, cheios de espírito, cheios de esperança.
Chorando, ela saiu, da casa, e o velho ficou à porta.
Cole abriu as portas de trás da ambulância, e ela percebeu o quanto sua mente a havia enganado.
Não era uma criatura horrível, olhando-a com desprezo, querendo pegá-la.
Era o seu cadáver.
"Acharam há poucos dias", disse Cole, "Ninguém sabia quem era, mas eu soube imediatamente que era você".
"Como?", ela perguntou.
"A aliança", apontou, e ela viu que a aliança brilhava  incólume no cadáver seco e carcomido, algo de santo na podridão.
Ela olhou da aliança a Cole, e, dele, ao velho.
"Que horas são?", perguntou.
"Não sei", o velho respondeu.
"E que importa?", disse, chorando sem nem perceber.
Levantou os olhos e viu a lua.
Quando os abaixou, não estava mais lá.


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No dia seguinte, teve-se que o velho morrera no seu sono, na madrugada daquela quarta-feira.
O obituário dizia que os médicos situavam sua morte entre as três e as quatro da manhã, sem certeza, mas o melhor que se poderia dizer é que ele morrera de noite, e a hora era nenhuma.

sábado, 10 de dezembro de 2011

"Independentemente do que diga o seu confiável Timex" - Parte Quatro

"Aquele verão foi marcado pelo terror", disse o velho, se preparando para sua narrativa, enquanto Charlotte olhava e olhava. Na sua cabeça, ela recapitualava tudo o que podia lembrar daquele verão.
Lembrava-se de Joy Spring, lembrava-se dos tempos pós-guerra, lembrava do nacionalismo que lhes foram injetado naqueles anos.
Naquele tempo, ser americano vinha com obrigações da alma, e cada americano deveria pagar com o que tivesse, mesmo que não fosse nada. O dever ao capitalismo católico, contra a balbúrdia atéia socialista - como lhes era explicada - dominava tudo em suas vidas. É interessante como uma idéia política de lavagem cerebral possa ter sido fundida com uma idéia de lavagem cerebral religiosa, especialmente porque do outro lado do mundo (ou bem ao lado dos E.U.A) estavam os inimigos de escrita cirílica.
Os russos não eram diferentes, de fato. De um jeito, ou de outro, estavam todos embebedando os americanos e russos, jogando-os um contra o outro, como numa brincadeira infantil em que, caso algo desse errado, ninguém escaparia vivo.
Alienados e possuídos completamente pelas forças de ambos os lados, aquele tempo foi um verdadeiro inferno.
Mas o inferno só se fez sólido no final do verão de 54.
"Comprara-nos uma casa, como disse", o velho continuou, tirando Charlotte de seus pensamentos, "Tivemos um filho, e estávamos felizes como nunca.
"Fazia uma semana que morávamos lá, e resolvemos chamar os vizinhos para um brunch, você sabe, para conhecermo-nos melhor", disse, respirando fundo.
"O brunch foi uma beleza. Conhecemos os Jefferson, os Chance, os Gordon, e, é claro, os William.
"Não vou mentir", confessou, "Não lembro de nenhum dos rosto, nem dos Jefferson, nem dos Chance e nem dos Gordon.
"Essa cabeça velha só consegue se lembrar de Greg e Anne William". Ao dizer isso, ele soltou um barulho gutural do fundo da garganta, e Charlotte percebeu de repente a verdade tão óbvia. Está morrendo, pensou, e não vai durar muito.
Mas o velho se recuperou e recomeçou sua lenta narrativa.
"Anne era uma mulher dos anos oitenta presa na década de cinquenta, sim. Tão logo nos conhecemos, eu percebi que ela diferente das outras - caramba, diferente até da minha esposa!
"Mas não era ruim, era só... Diferente.
"E dava para perceber que Greg sabia disso também - e não gostava. Ele era um daqueles caras caipirões, um homem que nós podíamos visualizar perfeitamente capinando a grama e plantando milho.
"E batendo na esposa, é claro".
Charlotte engoliu em seco, querendo perguntar aonde ia aquela história, mas sem a coragem para fazê-lo. Querendo mas não podendo, ela ficou parada, na poltrona velha, ouvindo um velho enfermo contar um velha história empoeirada.
"Desde o príncipio, ela me parecera uma mulher interessante, mas eu não pude falar com ela durante o brunch, visto que era política dos anos cinquenta de que, numa reunião, as mulheres sairiam e falariam sobre o que quer que mulheres gostassem de conversar, enquanto os homens conversariam sobre negócios, política, e tudo mais que fosse desinteressante - eu queria era falar com ela.
"Depois do brunch, no dia seguinte, minha mulher saiu com as amigas recém-conquistadas ao salão de beleza, enquanto eu fiquei em casa, na minha primeira folga do trabalho.
"Cuidei de Cole até ele dormir, depois sentei-me no sofá da sala e pus-me a olhar o tempo passar, talvez dormir um pouco.
"Ao contrário disso, assim que me sentei no sofá, veio Anne à porta. Queria falar com Charlie.
"'Poderia me dizer aonde ela foi?', perguntou, e eu lhe disse que fora ao salão, com as outras da vizinhança.
"'É sempre assim', ela falou, tristonha, e eu perguntei por quê, ao que ela respondeu 'Eu nunca faço amizades, e elas nunca me convidam para nada. Meu marido se relaciona bem com os outros homens da rua, mas eu... Bem, a mim, elas ignoram'. Convidei-a a sentar-se no sofá, e ouvi-a falar sobre sua vida, até notar que ela tinha diversas manxas roxas nos braços e que ela tinha um olho roxo coberto de maquiagem, que só se revelara quando ela começou a chorar".
Ela olhou para a figura estranha do homem, velho e cansado, perscrutando o seu rosto amassado de velhice, tentando ver algo denunciador, mas não viu nada. O velho falava a verdade - e de que lhe adiantaria mentir?
"Ao longo das semanas, nós ficamos cada vez mais próximos, e ela foi se abrindo mais e mais para mim, contando sobre o marido.
"Foi dois dias antes do acontecimento que marcou o verão de 54 que tudo desabou".
Algo dentro de Charlotte gritava incessantemente que não queria ouvir aquela parte da história, que era ruim e que ela não devia, que ela não podia, que era errado, mas ela não deu ouvidos à Charlotte pequena, com medo do escuro e do que toma vida e forma no escuro, mas não ouviu-a não porque não concordava, porque queria ouvir o resto da historia. Não ouviu-a simplesmente porque não podia se mover, porque sua única opção era ficar e escutar.