terça-feira, 13 de dezembro de 2011

"Independentemente do que diga o seu confiável Timex" - Parte Cinco e Final

"Não me leve a mal", disse o velho, naquela sala escura, "eu era um bom marido, e gosto de pensar que também fui um bom pai.
"Mas aquela moça... Ela precisava tanto de mim. Era como se eu fosse seu único porto seguro na vida.
"Eu sentia o que ela queria, mas não conseguia me afastar, porque ela era bonita, irreverente, inteligente, à frente de seu tempo, e, caramba! Eu gostava daquilo".
A mulher olhou para ele fixamente, e talvez nem tenha piscado, naqueles vinte segundos de fala. Estava hipnotizada por aquele contar de história; ou melhor, estava paralizada de medo.
Sentia as entranhas se revirarem, se afogarem gritarem. Sentia o coração batendo muito forte - sentia cada sístole e cada diástole nas pontas dos dedos, caídos no seu colo.
O subconsciente detectou um barulho vindo do lado de fora, mas disto a Charlotte acordada não tomou conta, somente percebeu que algo havia mudado quando o velho já estava a terminar seu conto.
"Estávamos no nosso quarto - meu e da minha esposa -, e sentávamos na cama, conversando. "Charlie tinha saído com as amigas, e eu já havia voltado para casa, pouco ligando para o que elas iriam fazer - esses momentos eram aqueles em que nós nos encontrávamos.
"'Tenho estado mais feliz, nesses dias', ela disse, ao que eu sorri e não falei nada, 'Nossas conversas me ajudam a suportar o meu marido, a vizinhança, a própria vida'. Eu sentia o mesmo, mas eu ainda amava minha esposa.
"Eu era jovem e tolo, e não percebi o erro que cometia ao vê-la inclinar-se pela cama e correspondê-la, inclinando-me também".
Fez-se silêncio por alguns segundos, até ele voltar a falar.
"Fizemos amor naquela cama como eu fazia a minha mulher, e fizemos duas vezes, maravilhados pela nossa capacidade primal de reproduzirmo-nos, sorrindo feito adolescentes".
"Ela entrou no começo da terceira, e o inferno aconteceu.
"Eu gritei os clichês, o discurso 'não é isso que você pensa', o discurso 'eu posso explicar', o discurso 'por favor, eu te amo!'".
O velhou soltou outra bufada gutural do fundo da garganta, ascendendo ao ar aquele cheiro podre de morte e bolor que vinha dele.
"E eu amava, mas fui idiota o bastante para deixá-la ir.
"Na mesma noite, os William saíram da vizinhança, mas não juntos. Anne foi para um hotel, daonde ela me ligou e me convidou a visitar, mas eu nunca fui. Não sei o que se fez do marido.
"Eu saí de casa envergonhado, fui sozinho a um motel de beira de estrada, onde chorei até dormir".
Charlotte ainda olhava para ele com uma sensação horrivel corroendo-lhe as pernas, as entranhas e a garganta.
No fundo de sua mente, uma porta se abria lentamente, deixando algo sair, uma luz estranha, por uma fresta, um canto não-explorado de sua mente.
Dessa vez, não era só a Charlotte pequena que tinha medo do sairia de lá. A Charlotte grande estava terrivelmente assustada.
"No dia seguinte, eu acordei no meu horário de sempre, disposto a consertar a besteira que tinha feito.
"Fui até a nossa casa, e deixei um bilhete, escrito e re-escrito tantas vezes até que saísse certo, e então fui ao trabalho".
O velho suspirou, sentindo o trabalho por vir.
"Foi durante o meu almoço que o verão de 54 entrou para a história.
"Todos os rádios repetiam a mesma coisa: 'Todos os moradores das áreas costeiras abriguem-se o mais cedo possível. O Governo declarou que as seguintes áreas serão afetadas [...]'.
"Era o Hazel".
Ele respirou fundo de novo, puxando mais ar do que nunca para seus pulmões velhos.
"O Hazel já tinha devastado o Canadá, mas ninguém esperava ele aqui!
"Ao ouvir o nome do nosso bairro eu corri para casa, mas eu não tinha meu carro próprio, então tive que ir por transportes públicos".
Uma pausa.
"O ônibus parou de rodar a poucas quadras de lá, e deu meia-volta, com medo do furacão, que já fazia sua presença ser notada.
"Os ventos horríveis, a chuva devastadora, tudo somava-se a um pesadelo sem fim.
"Corri até a casa. Estava tudo alagado, mas eu consegui entrar na casa sem cair na água.
"'Será que ela está bem?', 'Será que ela recebeu meu bilhete e saiu daqui?', 'Será que ela está abrigada?' foram perguntas que gritavam por respostas, perguntas que só o tempo responderia.
"Mas é claro que ela não ouviu o rádio!, pensei, Ela devia estar ouvindo música quando os anúncios sairam!, e eu simplesmente soube aonde você estava".
O velho engasgou, e Charlotte pulou para trás ao uso do pronome.
"E-eu?", disse, trêmula, "Não, não... Isso não é possível, eu sou muito mais nova do que..."
Mas era verdade.
Era verdade e ela sabia.
Charlotte - ou Charlie, na escola - sabia.
Ouviu-se contar o resto da história sem nem se dar conta, observando atônita enquanto a porta nos recônditos da sua mente se escancarava.
"Eu tinha chorado o dia todo, e, quando Joy Spring começara a tocar no rádio, eu desabei.
"Dormi ouvindo a música, na cama, pensando em você...".
O velho continuou.
"Cheguei e encontrei você na cama, gritei para que acordasse, disse que vinha aí o furacão que tinha destruído o Canadá, mas você não ouviu. Gritou que era um traidor, um mentiroso, um maldito que merecia morrer."
"E você saiu correndo, procurando Cole... Pegou ele no colo e gritou para que eu viesse também, mas eu não quis vir... Fiquei presa pela raiva que me tomava.
"Então o furacão apareceu, e qualquer discussão foi inútil".
Eles dois se encaravam, e o velho concluiu.
"Dos 357 prédios e casas em Long Beach, só cinco sobreviveram ao furacão. Nossa casa não foi uma delas.
"Lembro-me de ter me arrastado pelos escombros com Cole nos braços, que chorava, chorava e chorava, e eu procurava por você, mas você tinha desaparecido.
"Até agora".
Ela caiu para trás, tentando engolir tudo aquilo.
"Mas tarde, naquele dia, ouvi que o hotel em que Anne estava também foi destruído.
"No dia seguinte, procurando pelo seu nome da lista dos desaparecidos, encontrei o dela também, e soube imediatamente que ela tinha morrido.
"Assim como você".
Charlotte chorava copiosamente. Lembrava-se de tudo, mas nada explicava aquela situação.
"Fizemos um enterro simbólico, sem cadáver.
"Cole cresceu e eu me mudei para outro lugar, com menos memórias.
"Quando ele entrou na faculdade, eu me mudei para cá, e fiquei esperando por você, esses anos todos, esperando.
"Você por acaso se lembra do que havia no bilhete?"
Ela fungou um pouco e olhou para ele. Tirou então o papel que levava no bolso, e viu que ele estava branco, amassado e meio molhado, mas legível.
Nele, o velho tinha escrito:
"Eu te amo, e sempre te amarei.
"Por favor, perdoe-me. Eu sei que nunca vou ser bom o suficiente para te merecer, mas eu quero pelo menos tentar, pois é melhor tentar e fracassar do que nunca ter tentado. Vou fazer de tudo para recompensá-la.
"Encontre-me na praça aonde nos conhecemos, para podermos conversar melhor".
"É... aqui?", ela perguntou.
"Sim. Não sobrou muito dela, depois do furacão, então, na reconstrução, decidiram construir esses prédios aqui, fecharam a rua e a praça virou um monte de casa numa ladeira.
"Comprei essa assim que saiu. Era o meu jeito de manter minha promessa, porque te esperei, Charlie, te esperei".
"E eu vim..."
"Mãe, está na hora de ir", disse o homem que havia chegado minutos antes daquela revelação.
Ela se virou assustada e olhou. Era ele, o homem que dirigia a ambulância. Cole. E viu que na testa dele havia apenas uma cicatriz, uma marca de sua sobrevivência ao Hazel.
O velho se levantou, e Charlotte foi com ele, dizendo "Eu te perdôo, por tudo que fizeste, perdôo. Perdôo porque te amo", e beijou-lhe na boca, como uma fantasma beija um velho.
Mas, para eles, foi como se fossem jovens de novo, cheios de energia, cheios de espírito, cheios de esperança.
Chorando, ela saiu, da casa, e o velho ficou à porta.
Cole abriu as portas de trás da ambulância, e ela percebeu o quanto sua mente a havia enganado.
Não era uma criatura horrível, olhando-a com desprezo, querendo pegá-la.
Era o seu cadáver.
"Acharam há poucos dias", disse Cole, "Ninguém sabia quem era, mas eu soube imediatamente que era você".
"Como?", ela perguntou.
"A aliança", apontou, e ela viu que a aliança brilhava  incólume no cadáver seco e carcomido, algo de santo na podridão.
Ela olhou da aliança a Cole, e, dele, ao velho.
"Que horas são?", perguntou.
"Não sei", o velho respondeu.
"E que importa?", disse, chorando sem nem perceber.
Levantou os olhos e viu a lua.
Quando os abaixou, não estava mais lá.


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No dia seguinte, teve-se que o velho morrera no seu sono, na madrugada daquela quarta-feira.
O obituário dizia que os médicos situavam sua morte entre as três e as quatro da manhã, sem certeza, mas o melhor que se poderia dizer é que ele morrera de noite, e a hora era nenhuma.

2 comentários:

  1. ráá
    vc leu meus contos
    *-*
    obrigado bastante por ter usado tanto do seu tempo pra vir aqui, Aline, e principalmente pra comentar!
    A maioria dos meus visitantes nem comenta srs

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