quinta-feira, 21 de julho de 2011

A Rainha-Mariposa - Parte Dois


A avenida estava vazia nos dois sentidos. “Merda... Se eu tivesse saído mais cedo, talvez...”, pensou, “Não, eu não posso. Tenho que acabar com isso logo.”.
Acelerou o carro – um carro do ano, lógico, típico de meninos-prodígio como ele – pela avenida, à procura de uma chance. Foi quando percebeu que não era mais ele ao volante. Viu-se esticando os segundos enquanto as mãos trabalhavam habilmente no volante. Viu-se como um pequeno inseto vendo um corpo gigantesco funcionar. Ele não sentia mais seus membros, seu corpo ou sua cabeça.
Só os olhos pareciam obedecer, e, enquanto via seu corpo se mexer sozinho, seus olhos pairaram sobre a mata à outra margem da estrada. De repente o carro deu uma guinada. Estranhamente ele não sentiu a guinada propriamente dita, mas sentiu a mudança de gravidade e sentiu-se puxado para a esquerda.
Perdeu o controle completo do seu mundo e as cores sintetizaram-se em tons de cinza. O carro seguiu perpassando a avenida transversalmente, invadindo o meio-fio e a outra pista e então a reserva florestal que o aguardava no outro lado.
O fedor começou a se intensificar naquele momento eterno, enquanto todas as cores desvaneciam ao preto-e-branco, conhecidos tons de cinza.
Forte demais, e ele sentiu aquilo se solidificar na sua traquéia, tapando a respiração.
O tempo fluía devagar, enquanto ele sentia o carro finalmente alçar vôo pela lateral da avenida, e o mato tornar-se sua única paisagem.
O fedor ficou sufocante. Sentia-se estrangulado por mãos invisíveis.
Viu seu próprio corpo sacudir como um boneco e o carro girar como uma grotesca e mal-acabada bola de futebol. Mas ele não sentia nada disso: flutuava.
Flutuava acima de tudo aquilo, numa vaga impressão de sonho, enquanto tudo ao seu redor escurecia, e a noite tomava conta de sua mente.

                                                  – – – – – –

Acordou de cabeça para baixo num corpo que parecia estranhamente alheio, mas familiar.
Sua experiência extra-corporal parecera um sonho, mas ele sabia que fora real.
Não que isso realmente importasse a essa altura da história.
Não, agora era tarde demais.
Gemeu sonoramente. “Incrível,”, pensou, “devo ter rolado mais de vinte metros dentro da mata, mas mesmo assim só devo ter alguns arranhões. Sou um fracasso até em suicídios.”.
Essa idéia o fez rir, mas não tanto, já que sua boca estava dolorida.
Checou o bolso da calça, e constatou estranhamente alegre que, do grande acidente, apenas o fiel isqueiro havia saído ileso.
Mas tinha algo estranho, algo fora do lugar. Aquela mata não parecia tão espessa vista da avenida. De fato, tudo estava diferente e estranho.
Mas ele não notou isso. Estava ocupado demais regozijando-se com a vida nova.
Tão ocupado que não notou que não estava sozinho.
Tentou soltar o cinto de segurança, mas estava travado naquela posição.
Um farfalhar quase passou despercebido na grama. Tentou virar o pescoço, mas este também estava travado.
Com um grunhido inarticulado, Rodrigo usou toda a sua força para apertar o botão que lhe libertaria daquele aperto sufocante do cinto de segurança.
Ainda bem que o airbag não disparou”, pensou. Estranho era pensar que dois minutos antes tinha se jogado para a morte.
Mágica, e o cinto finalmente o libertou do abraço mortal. Ele caiu com o pescoço dobrado comicamente no teto do carro virado. Pela janela, só via a grama.
Pensou que veria as patas do animal que teria se aproximado e causado aquele farfalhar, mas não viu nada.
Não havia quebrado nenhum osso, nem ficado realmente machucado, e isso era bom.
Rastejou como pôde em meio a vidro quebrado e pontas de metal torcido, até que, enfim, conseguiu sair pela janela quebrada sem muitos arranhões.
Tentou se por de pé apoiando-se no carro, mas os joelhos não deixavam, então ele só escorregou lentamente pela lateral.
Sentou-se na grama com as pernas abertas e jogadas no chão de qualquer jeito, arfando e suado, mal se dando conta do que tinha feito – ou da mulher parada docilmente a uns dois metros dali. Percebeu que não sentia mais aquele fedor desde que acordara de cabeça para baixo, e viu que podia respirar normalmente de novo.
Ali estava ele, sentado na grama de olhos fechados, sujo e sangrando ele vários lugares, o terno caro encharcado de lama e suor, o seu carro do ano destruído.
Finalmente, olhou para frente e viu a mulher no vestido rosa, os pés encobertos pela grama.
A mulher – que não passava de uma moça – era linda e jovem, assim como aquela que aparecia nos seus sonhos. Usava um leve vestido rosa que poderia ser feito de papel-manteiga, e que deixavam ver boa parte do corpo bem delineado e de pele branca como a neve.
Ela se aproximou dele, fazendo aquele leve farfalhar, como se estivesse deslizando pela grama. Ele a fitou de olhos arregalados, sem saber o que dizer.
“Quem... Quem é você?”, perguntou.
“Eu?”, perguntou ela, os cabelos castanhos esvoaçando com o vento da floresta. “Eu tenho muito nomes,”, suspirou e olhou para o céu, “mas se quiser me chamar de algo, chame de Melissa”.
“Melissa...”, parou e refletiu, “Melissa, você... Você é um anjo?”
Ela riu docemente, levando uma das mãos à boca.
“Algo do tipo”.
“Leve-me daqui”, disse ele abruptamente.
“Sim, é o que eu tenho que fazer”.
“Sonhei com você, não sonhei?”.
Ela riu de novo.
“‘Abra os olhos, sinta a brisa, venha até mim’”, uma risadinha, “Sim, fui eu”.
Ele se levantou tropegamente, mas seus joelhos cederam e ele ficou apenas ali, parado de joelhos, olhando para aquele rosto de beleza angelical.
“Quer vir comigo?”, Melissa perguntou. E ele assentiu fracamente com a cabeça. Ela sorriu à resposta, e o abraçou.
No começo, ele achou que ela quisesse confortá-lo, mas então viu, por cima dos ombros daquela mulher, um lindo par de asas se abrindo – asas de borboleta, tais como nos sonhos. Ela o virou com braços surpreendentemente fortes, num abraço pelas costas e alçou vôo pelo céu azul da manhã de quarta-feira.

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