domingo, 3 de julho de 2011

A Noiva e o Olvido (na beira do esquecimento)

A Estrela
Vi uma estrela tão alta,
Vi uma estrela tão fria!
Vi uma estrela luzindo
Na minha vida vazia.

Era uma estrela tão alta!
Era uma estrela tão fria!
Era uma estrela sozinha
Luzindo no fim do dia.

Por que da sua distância
Para a minha companhia
Não baixava aquela estrela?
Por que tão alto luzia?

E ouvi-a na sombra funda
Responder que assim fazia
Para dar uma esperança
Mais triste ao fim do meu dia.

                 Manoel Bandeira, A Estrela




Eu era uma mulher madura.
É, essa é a melhor expressão para me definir, definir uma mulher fria e cáustica, que, mesmo ao fim da vida, ainda continuava nas mesmas teimosias idiotas.
Sim, eu era uma mulher madura, ou pelo menos achava que fosse.
Meu nome é Otávia, e eu estou agora com meus 24 anos, jazendo fria no chão de uma igreja vazia, sem ninguém para velar meu corpo.
Que ironia, justo eu, jogada assim, com meu vestido de noiva impecavelmente arrumado, como se esperando que sua dona ainda levantasse. Não haverá nenhuma marcha nupcial para você, amiguinho. Nem mães e tias chorosas, sobrinhos entediados, amigos em frenesi. Não para você.
Sinceramente, para uma mulher como eu, hoje deveria ser o pior de tudo, minha morte, minha farsa descoberta, minha vida se esvaindo assim, sem piedade, e sem ninguém que se importasse comigo para pelo menos dizer “lá se vai Otávia, foi e foi, e que nunca volte”.
Todos foram embora, eu estou aqui sozinha, ainda no chão da igreja, imóvel e suspensa nesse segundo eterno.
Como eu disse, eu fui uma mulher madura, pelo tempo que me foi dado, e desperdicei minha vida nisso.
Nasci a 24 anos numa madrugada de domingo, após dezenove horas de parto, no dia 25 de novembro, que calha de ser hoje – morrer no aniversário é um privilégio de poucos.
Como muitas meninas da minha cidade, eu estudei num colégio católico só para meninas, onde havia uma freira carrasco que dominava nossas vidas quase que por completo. Era horrível: bastava um escorregão, uma palavra fora de hora, para que fôssemos mandadas ao campanário ficar de joelhos rezando debaixo do sino. E ainda havia as felizes ocasiões em que ela nos batia com a régua e nos mandava ajoelhar em milho. Cruel, eu sei, mas Irmã Rita ensinava com eficiência a um monte de garotinhas a dura e absoluta lei dos homens: não há lugar no mundo para as mulheres fracas, e disso eu sempre soube muito bem.
Foi na faculdade que eu conheci Caio, meu futuro ex-noivo.
Nós dois gostávamos das mesmas coisas e fazíamos o mesmo curso, administração. Passeávamos nos parques, andávamos por ai, íamos ao cinema.
Era como se o mundo houvesse se resumido a nós dois – e nós não dávamos a mínima para isso. Ah, era só eu e você, Caio.
No terceiro período, você conheceu a Ana, e a pobre Otávia foi deixada para trás.
Oh, Caio, ainda não sei o que você viu nela! Vocês só brigavam, o tempo todo! Era como se um vivesse para contestar o outro.
De repente, você passou a falar só dela o tempo todo, e foi como assistir a uma comédia romântica pelo lado de fora: era você e ela, você e ela, o casal antagônico, e eu, a megera largada, ferida, e abandonada.
Deus sabe muito bem de todas as minhas contas de boas e más ações em vida, e Ele também sabe como eu reagia àquilo. Como eu disse antes, fui uma mulher adulta, ou pelo menos achava que era, e passei a agir como tal.
“Ana” virou palavra proibida entre nós dois, e você passou a ficar cada vez mais incomodado com a minha presença, e eu não podia fazer nada para acabar com isso de vez, havia, portanto, incorporado meu papel de megera, a mulher madura e auto-suficiente que Irmã Rita tanto lutou para construir, a mulher madura e auto-suficiente que está aos poucos morrendo por dentro.
Caio me escapava rapidamente por entre os dedos, e eu tinha que tomar uma atitude, será que alguém me compreende? Será que alguém poderá entender que o que fiz, fiz por amor? Será?
Pois bem, mentir no leito de morte é uma das piores coisas que alguém deve fazer. Eu confesso: fingi estar grávida.
A situação ficou muito tensa entre nós, você estava desnorteado. “Aborto?” “Nem pensar, sou nascida e criada numa família católica“. “Adoção?”, “ESCUTE, CAIO, EU QUERO ESSE BEBÊ, E VOU CRIÁ-LO, QUEIRA VOCÊ OU NÃO!”.
Acho que senti uma pitada de resignação da sua parte nesse dia. Quem sabe você estivesse decidido a criar o bebê comigo, esperando que pudesse me amar de novo, e dar ao nosso pretenso filho uma família decente. Depois daquela noite no café em que eu saí correndo e chorando enquanto você me gritava, eu a vi. Ana, a maldita prostitutazinha.
Ela estava olhando a situação de longe, esperando que eu fosse embora para poder colocar suas patas em você. Mas eu não ia deixar, a vitória seria minha.
Claro, na hora, ninguém poderia prever os acontecimentos porvir.
Você me pediu em casamento, depois de duas semanas de protelação, e eu aceitei, radiante. Como já deve ter dado para perceber, a data marcada foi 25 de novembro do mesmo ano, meu aniversário.
O pedido aconteceu julho, enquanto a concepção ocorreu em junho, então, no casamento, já teriam se passado cinco mesmo, não é?
No começo eu me preocupei com aquilo, mas, Caio, a minha barriga cresceu. Ela cresceu, e era seu filho, Caio, seu único e adorado filho, filho da sua única e adorada mulher.
O tempo passou, e a Ana continuava assediando você, apesar do nosso filho estar visivelmente crescendo nas minhas entranhas – oh, filho do nosso amor, Caio, do nosso amor. Eu precisava fazer algo.
Quando eu decidi tomar ação, foi anteontem, depois do que aconteceu na semana passada.
Ela veio ao nosso apartamento, aquela lá, teve um ataque. Começou a gritar que eu era uma farsante, que exigia teste de paternidade, que tinha certeza de que aquele bebê podia ser tudo, menos fruto do nosso amor – só nosso.
Você ficou bastante perturbado com aquilo e pediu um teste de paternidade, como ela havia sugerido. Mas que ofensa! Meu próprio noivo, pai do meu filho, exigindo um teste de paternidade!
Mas eu o fiz mesmo assim, pois eu acredito do fundo do meu coração que esse bebê é meu e seu. Porém isso não era suficiente.
Eu precisava dar um fim naquela Ana.
Por isso, anteontem, eu fui até o apartamento dela. Ela me recebeu com gritos, e me chamou para ver uns papéis que você supostamente havia dado para ela, Caio. Os papéis eram o teste de paternidade, e ela gritava que eu não estava grávida, que era tudo um embuste, que era uma farsa, que eu estava mentindo E QUE O FILHO QUE, AINDA HOJE, NA MINHA MORTE, VIVE E RESPIRA EM MIM, NÃO EXISTE!
Era uma falsificação barata, Caio, oh, Caio, era uma falsificação mal-feita.
Eu mostrei para aquela vadia dissimulada o que ela merecia, e esfaqueei ela, esfaqueei ela o máximo que pude, em nome do nosso amor, Caio.
Do nosso amor.
NOSSO AMOR.

COMO VOCÊ PÔDE ME ABANDONAR, CAIO?
COMO?
Eu fiquei lá esperando como uma idiota por você.
Esperei por uma hora, até descobriram aonde você estava, Caio.
Você estava estirado na frente do prédio dela.
Você havia se jogado da sacada, Caio.
Eu dei minha pureza por você, eu fiz tanto por nós, e você se jogou por ela? Você...
Você está me esperando, não está?
Assim que isso acabar, você vai estar na porta da igreja, todo galante

você vai


você




Todos foram embora e disseram que a polícia vem logo
É para ver nosso casamento, Caio, de tão lindo que é


lindo

é lindo

Eu não consigo me mover, eu caí no chão e está escuro.
Eu estou esperando por você, mas eu só vejo uma estrela.
Só vejo uma estrela, tão longe, e tão fria.
Vejo você, Caio.
Vejo você.

Eu estou desparecendo.


esquecendo



morrendo



eu










Eu te amo.

2 comentários:

  1. Oi, Matheus! Adorei seu blog. Você criou outro dia e só me falou agora, haha. Tudo bem. Ah, finalmente as férias estão chegando e eu vou poder ler a sua coisa da Mariposa e tal. :), já estou ansiosa, afinal. Fui.

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  2. que bom que voce gostou aheauaheuaheuaheuahea
    é, eu criei a pouquissimo tempo, e foi do nada, tipo, pensei e resolvi criar um.
    ah, e que venha a semana-tortura \o

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