sábado, 23 de julho de 2011

ESTE É UM CONTO SOBRE UM HOMEM MORTO

Ele correu pela rua estreita e escura, na fria noite.
Acima, o céu o encarava de face nua e sem estrelas.
Aos lados, muros impassíveis.
Abaixo, um chão de negrume tão denso que poderia desfazer-se e engolí-lo.
Atrás e à frente, nada.
Mas ele corria. Não havia nada que o perseguisse mas ele corria.
Eis aí um homem fugindo de si mesmo.
Ele corria e não sentia. Ele corria por inércia, e não sentia.
Ele corria como quem vive e como quem morre.
Ele corria como um idoso que continua a viver e encarar o tempo por puro hábito.
Ele corria como um louco.
Mas há algo além de um homem que corre numa noite escura nesse cenário.
Há fuligem.
Caindo como neve no chão, desaparecendo no ar e no chão, pois até o que respirava era pura escuridão.
A fuligem cobria seu corpo inteiro. Sua roupas, seu rosto, seus cabelos indefinidamente lisos. Um homem sem face numa noite que não parecia noite, mas sim algo mais cruel, mais profundo, mais terrível.
Ele corria, e agora parava. A ruela chegara ao fim.
Diante de si, um muro imponente, negro como qualquer outra coisa naquela noite, armadurado com camadas e camadas de fuligem.
Havia um homem parado agora.
O homem não era um homem.
O que antes corria se encostou de costas na parede e encarou a face sorridente do homem parado.
"Temo que seja tarde demais para você, jovem", ele disse, "Temo que seja tarde demais...".
O outro apalpou a parede, procurando uma saída milagrosa, uma passagem secreta, qualquer coisa que viesse, desde que o tirasse da vista do homem.
Ele o encarava nos olhos, e ele enlouqueceria com aquele olhar.
Um clarão veio no céu, e por um momento ele pôde ver o homem parado - mas ele sabia muito bem que o outro podia vê-lo o tempo todo, claro como o dia.
A face diante dele era a face de alguém que simplesmente não podia existir.
Os anos de um homem se pesam no seu rosto, enrugando-o, destruindo-o, cansando-o.
O rosto do homem que encarava não tinha nada disso. O sorriso infantil de deboche estampava no seu rosto uma satisfação nefasta sob olhos extremamente sábios, e extremamente velhos.
Alguém que sempre esteve e sempre estará.
Nenhum dos tijolos da parede cedeu.
Nenhum herói apareceu.
Não houve nenhum túnel escondido pela fuligem.
Mas aquele breve momento se suspendeu no ar, um momento de compreensão súbita, uma epifania.
Por um segundo, ele viu todos os seus arredores, ouviu todas as línguas, soube todas as profecias.
Por um segundo, ele sabia de tudo que poderia ser sabido.
Por um segundo, ele viu tudo que tinha para ser visto no mundo - nos mundos.
Por um segundo, ele soube de coisas tão horríveis, coisas que nunca deveriam ter sido feitas, ditas, presenciadas ou narradas.
Por um segundo, ele sentiu a loucura.
O segundo passou.
O segundo passou, e ele só podia esperar pela conclusão dos fatos.
O homem sorriu novamente.
Dessa vez, não houve clarão.
Só houve escuridão.
Escuridão líquida, invandindo o seu corpo.

O homem que corria se afogou na escuridão que o cercava.

O homem que corria acordou no escuro.
Numa noite sem estrelas, numa rua deserta.
O homem que corria acordou correndo.

Um comentário:

  1. Ao meu ver, os elementos do conto se misturam a um ponto que tudo parece ser uma coisa só. O tal homem correndo não seria, nesse sentido, algo distindo de toda a escuridão ao redor dele. Só não consegui associar a coisa toda à ideia de morte.

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