terça-feira, 24 de janeiro de 2012

A Ilha Em Forma de Navio de Guerra

Hashima era bem o que ele esperava que fosse.
A ilha em forma de navio de guerra despontava no céu acinzentado, mostrando sua face esburacada, abandonada, em completo descaso.
Gunkanjima, a ilha em forma de navio de guerra, já tinha sido muito populosa. Foi lar de uma das maiores minas de carvão do Japão, e já chegou a ter uma das maiores concentrações populacionais com seus cinco mil habitantes.
Ele olha da ilha para seu bloco de notas.
Nele, já havia marcado todas as informações necessárias, a história resumida da ilha em poucas páginas num caderninho.
Lógico, a verdade não caberia naquele pequeno bloco. E ele queria a verdade.
Não que acreditasse em fantasmas, ou que achasse que a ilha fosse assombrada, ou que ainda acharia pessoas morando lá, ou qualquer coisa. Ele era um jornalista que procurava a verdade simplesmente pela verdade.
O homem que conduzia o barco (muito pequeno, quase um bote) era um homenzinho atarracado, um tailandês, supunha. Seu japonês era muito ruim, cheio de sotaque, mas tudo bem para ele. Desde que aquele homenzinho atarracado pudesse levá-lo até a ilha em segurança, e trazê-lo de volta no dia seguinte.
O plano era simples.
Chegaria pela manhã passaria o dia todo na ilha, vasculhando, tirando fotos, fazendo anotações, procurando algo digno de documentação. Quiçá um jornal antigo, um diário, livros, restos das muitas vidas que passaram naquele lugar.
Depois, no dia seguinte, o homem chegaria de barco no porto e o levaria de volta a Nagasaki, aonde encontraria o editor de uma revista importante, em que pretendia publicar suas descobertas, para mostrar-lhe sua proposta de reportagem. Se voltasse com material suficiente, talvez convencesse-o a publicar sua matéria, uma chance que não perderia por nada no mundo.
Satoshi era um jornalista japonês nos fins dos quarenta anos, divorciado, vivendo em um apartamento minúsculo em Tóquio, sem publicar nada desde seu divórcio, dez anos antes.
Mas você sabe que foi antes, não sabe? Foi por isso que sua mulher o largou.
Jogou aqueles pensamentos para longe, para aonde ele não pudesse ouvi-los.
Focou-se no mar.
Focou-se na canção mal-pronunciada que o remador tailandês entoava.
Focou-se no céu.
Focou-se na fome.
Focou-se...
O barco parou abruptamente, tirando Satoshi de suas reflexões internas levando-o a um outro nível completo de assombração.
Tão rápido quanto a ilha havia despontado do mar, haviam chegado nela.
O tailandês recusou-se a chegar perto da ilha, murmurando alguma tolice supersticiosa que ele simplesmente ignorou, aceitando as negações do homenzinho.
Desceu do barco carregando suas coisas - pouco além de uma mochila com comida, lanterna, saco de dormir, celular (sem sinal, naquele lugar), máquina fotográfica, um bloco de notas e uma caneta. Aquela caneta de ouro, de tinta recarregável, que ganhara do pai quando fizera 18 anos.
"Eu sei que é pouco, e que você merece mais", dissera-lhe, "Mas é muito importante que tenha essa caneta, filho, pois foi com ela que construí minha carreira". O pai fora um jornalista importante, que trabalhara num jornal de Tóquio relativamente influente por anos, até ter um ataque cardíaco e morrer tragicamente. Fazia vinte anos que o pai morrera, e Satoshi ainda sentia falta dele.
De qualquer forma, combinou com o tailandês - que, desconfiava, devia ser ilegal - o horário em que chegaria (bem cedo pela manhã, pouco depois do sol nascer).
Ficou ainda na praia, observando o barquinho desaparecer entre as águas antes de se virar e encarar de frente a carcaça da ilha.
Prédios por todo lado, ruas abandonadas. Pedaços de papel voando por aí, todos brancos e manchados pelo tempo, sem nada importante a acrescentar ao mundo exceto o fato de estarem todos mortos ali, e nada se fazia por lá havia anos.
Pegou a câmera pela alça e tirou uma foto da paisagem, pensando consigo mesmo que talvez tivesse realmente sido uma perda de tempo vir até aqui.
Todos disseram que eu estava louco, que seria perda de tempo e de dinheiro.
Continuou mesmo assim. Tinha sua carreira em jogo, senão sua própria vida.
Namu amida butsu, rezou, antes de seguir em frente.
Mais à frente haviam lojas, e ele parou um pouco para observar e tirar algumas fotos.
As lojas estavam vazias, logicamente, já que as pessoas agarraram o que puderam antes de fugir da ilha.
Fez uma nota mental de que, no meio de toda aquela bagunça, as pessoas acharam tempo para pegar cuecas novas e roubar vestidos.
Olhou mais um pouco.
Essa aqui era uma loja de sapatos, e ali na frente temos um restaurante. O que é aquilo? Um café?
Depois entraria numa delas para ver se achava algo de valor, algum registro escrito ou fotográfico do que acontecera ali.
ôSeguiu pela rua principal com o sol atrás de si, sentido ele se por minuto a minuto, sabendo que aquele tempo seria precioso.
Se quisesse se estabelecer, teria de fazê-lo antes que escurecesse, porque não tinha energia em parte alguma da ilha.
Quase que não notou quando pisou numa foto no chão.
Olhou para baixo e viu que a foto mostrava aquela mesma rua, num dia muito movimentado, talvez o primeiro dia da grande fuga que fez com que aquela ilha ficasse vazia.
Ela fora tirada de cima, da janela do prédio que estava à sua direita, e captava os movimentos apressados e exagerados das pessoas que fugiam.
Haviam japoneses e coreanos correndo de um lado para o outro. Crianças choravam, perdidas dos pais. Pessoas passavam sem nenhum escrúpulo, segurando quaisquer objetos que conseguissem arrancar das mãos dos aflitos donos das lojas.
Ele viu uma pessoa caída no chão.
Fora pisoteada e morta.
No meio de toda confusão, havia algo horrivelmente inumano no ar.
Melhor, havia algo humano demais.
Uma sensação palpável de medo e psicose, como se a fuga desesperada tivesse deixado a todos insanos.
Ele viu pessoas com ferimentos horríveis correndo, batendo, brigando, empurrando.
Viu sorrisos sangrentos de pessoas sem dentes.
Viu pessoas cujos olhos lembravam mais os de animais.
Guardou a foto no bolso, fazendo outra nota mental de procurar mais coisas no chão como aquela. Certamente haveria mais.
Com o sol já se pondo, e ele resolveu se virar e procurar o quarto donde aquela foto fora tirada.
Com esse objetivo em mão, pôs-se a empurrar as portas de madeira velha de um prédio de apartamentos.
Presumivelmente, aquelas eram as moradias dos coreanos durante a segunda guerra, então todos os quartos eram pequenos e mal-cheirosos, cheios de marcas nas paredes e no chão, um lugar onde muitos dividiam pouco, e em que mortes eram comuns e em massa.
Aqueles quartos, portanto, nunca pertenceram a ninguém, tampouco se conhecia a identidade da maior parte de seus habitantes. 
Como diria George Orwell, são despessoas, pensou, achando que a frase soava bem, e que seria uma boa ideia acrescentá-la no trabalho.
Depois de vinte minutos abrindo e fechando janelas, procurando a sala certa, achou aquela que tinha o ângulo perfeito da foto. Olhou no chão e viu que ele estava coberto de marcas de todo o tipo: de pés, de unhas, de tentativas de cravar no chão os acontecimentos de lá.
Ele olhou as paredes e viu símbolos incompreensíveis, mas então percebeu que ele simplesmente não conseguia ler coreano - especialmente aquelas palavras, tão trêmulas e desesperadas.
Abaixou-se e olhou debaixo da pobre cama de estrados.
Havia um pedaço de papel amassado, imprensado contra a parede, completamente dobrado.
Tirou-o com o maior cuidado e desdobrou-o.
Eram várias páginas de uma história escrita numa caligrafia comprimida, como se tivesse medo de acabar o papel - provavelmente tinha.
Aquele seria um documento importante. Mais importante ainda do que as fotos que tinha tirado - e a que tinha achado.
Resolver assentar-se naquele quarto, preparando-se para aquela leitura.
Abriu seu saco de dormir e acendeu uma lanterna, abrindo a primeira das páginas (eram cinco, frente e costa).
A história contava sobre um jovem médico coreano chamado Bae.
Escrevendo em japonês, Bae contava que havia sido capturado pelas forças japonesas em 1938, e fora levado num barco com mais duzentos outros coreanos para o Japão, de onde um grupo menor deles fora levado para aquela ilha para trabalhos forçados na mina de carvão.
"Achava que poderia escapar de qualquer lugar, mas perdi minha esperanças no momento em que vi a ilha em forma de navio de guerra", dizia.
A história continuava contando todos os maus tratos que ele havia sofrido, contando em detalhes as surras, as jornadas extensivas, a comida parca, ruim e gelada. Os aposentos apertados e superlotados.
"Peguei os papéis por aí, catando o lixo até achar algum que estivesse em branco. O carvão foi fácil, mas escrever nem tanto", contava, acrescentando que tinha de se esconder e escrever às cegas.
Satoshi passou horas lendo o relato de Bae, que destrinchava toda a sua história de dor, toda a sua saudade de casa, todo seu ódio pelo governo japonês, todo seu ódio cego contra si mesmo, contra os outros prisioneiros, contra a Coréia, contra tudo, contra nada.
Ele tinha ódio.
"Quando veio a bomba atômica, eu estava na mina, e escapei dos deslizamentos de terra por pouco, mas foi minha sorte, não estar exposto a ela.
"Mais de mil pessoas morreram naquele dia, e nenhum de nós foi o mesmo desde então".
Bae contou que permaneceu na ilha mesmo após a guerra pois não tinha aonde ir. Sua família provavelmente estava morta, e ele não tinha nenhum documento e nenhum dinheiro, por isso aceitou viver na ilha, após sua reconstrução, ganhando mal o suficiente para viver.
"E assim foi até o inferno começar", dizia.
Satoshi respirou fundo, preparando-se para a leitura.
"Por causa da nova demanda por petróleo, milhares de minas estavam fechando em todo país.
"Foi só uma questão de tempo para fecharem Hashima, apesar de haverem mais de cinco mil almas aqui", escreveu.
A debandada durou cinco dias cravados.
Em cinco dias, a ilha passou de super-populosa a abandonada.
Bae contava que muitos tinham morrido pisoteados, assassinados enquanto tentavam roubar uns dos outros.
Ele já estava no final do relato, quando ouviu um barulho vindo do lado de fora.
Satoshi se levantou e olhou pela janela.
A ilha estava completamente escura, numa noite sem lua e sem estrelas.
Ele pegou a lanterna e tentou procurar a fonte do barulho, mas só o que ele viu foi lixo e mais lixo.
Ouviu outro barulho, dessa vez de dentro do prédio, então resolveu descer e investigar.
Pegou a lanterna e os papéis, com a lanterna em mãos, e os papéis no bolso do casaco.
Desceu as escadas devagar, procurando por algo que fosse a fonte dos barulhos.
Apontou a lanterna para o chão e só que viu foi o de sempre.
De repente, ele começou a sentir-se observado, com olhos por todos os lados.
Correu até o andar térreo, e saiu para a rua, suando frio, apontando a lanterna para todos os lados, sem ver ninguém,
Por detrás dele, ouviu passos rápidos correndo, e virou-se na hora, mas só viu o relance de uma perna infantil num sapato azul, e não viu mais nada.
"Quem está aí?", gritou. "Eu vi você, não adianta tentar fingir que não!".
Ele está com muito frio e está aterrorizado.
Ele está com muito medo, e se sente desolado.
"QUEM ESTÁ AÍ?", berra, sem resposta.
Exceto que houve resposta, mas foi um raio forte que caiu num prédio centenas de metros adiante, iluminando tudo ao seu redor durante um único segundo.
Um segundo de luz, e já havia acabado, mas o que ele vira queimaria nas suas retinas para sempre.
Uma multidão de mortos encarava ele de frente, sem nenhuma expressão além da fria morte gelada e vazia. Cada um deles murmurando em silêncio histórias que ele podia ouvir claramente no ouvidos, mas que, no fundo, sabia que vinham da sua mente.
Aqueles mortos sussurravam nas sombras seu ódio, sussurravam palavras inaudíveis no vento, amaldiçoando tudo, matando tudo o que viam com aquele olhar cruel e tão horrivelmente despido de qualquer emoção.
Exceto o ódio.
Ele sentia o ódio, mas não era só ódio.
Era desespero.
Eram mortos esquecidos.
São despessoas, pensou, inutilmente.
Fileiras e fileiras de mortos sem nome, sem face, sem rumo nem norte. Mortos sem direito à própria morte.
E o segundo passou, mas e o terror que invadiu o coração de Satoshi ficou, e tomou conta do seu corpo, e ele começou a correr.
Corria no escuro sem direção, sem ver nada, sabendo que cedo ou tarde bateria numa parede e ficaria desacordado, e pouco ligando, desejando ficar desacordado, como um golpe de piedade, uma pequena benção naquele inferno recheado de desespero.
E Satoshi correu. Gritando a plenos pulmões sem nem saber que o fazia.
Então ele tropeça e cai, sentindo o peso do próprio corpo de maneira extremamente dolorosa.
Ao tropeçar, sua mente finalmente se desfaz do seu corpo.
Enquanto ele desliza para a terra da inconsciência, ele ouve uma voz estranhamente comum dizer nos seus ouvidos.
Namu amida butsu.


Satoshi acorda com os gritos mal-pronunciados do tailandês, com seu barquinho a uma cuidadosa distância da ilha.
Estava deitado na praia, com todos os músculos doloridos, sentindo um cansaço horrível.
Demorou ainda alguns segundos para que ele se lembrasse do que tinha acontecido na noite anterior, e, quando lembrou, foi como se estivesse vendo tudo de novo pela primeira vez.
Controlou-se a acenou de volta para o homenzinho, pensando nas suas coisas ainda no quarto.
Não iria lá nem por todo dinheiro do mundo.
No final, foi como lhe disseram: perda de dinheiro.
Teria que desmarcar o encontro.
Já no barco, ele resolve descansar, dando adeus à ilha.
Foca-se no mar.
Foca-se na canção mal-pronunciada que o tailandês entoava.
Foca-se no céu.
Foca-se na fome.
Foca-se...
Bae era budista?
Ele dá um salto com aquela realização, com tudo fazendo sentido na cabeça.
Bae viveu aqui.
Bae morreu aqui.
Bae tirou a foto e a jogou na multidão, esperando que alguém a encontrasse e percebesse os animais que eram.
Bae se jogou do prédio.
Bae morreu aqui.
Sentiu o bolso e viu que ainda tinha os papéis, e tirou eles do bolso, se xingando por não ter pegado a foto também, mas...
A foto estava no meio dos papéis, bem guardada.
Ele não lembrava de tê-la guardado, mas, se estava lá...
Você realmente acredita nisso?
Não, não acreditava.
De repente, ele percebeu o que tinha que fazer.
O único jeito de apaziguar os mortos de Gunkanjima.
Ele tirou o celular do bolso e olhou o relógio. Oito horas da manhã.
Chegaria bem a tempo do seu encontro com o editor.

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