sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Amnésia



Tick, tack, fez o relógio – daqueles antigos, redondos, com dois sinos em cima.
Era para ser um som relaxante, ele achava. Para os outros, talvez — talvez até mesmo para o próprio Doutor Roberto ­­­—, mas para ele era um pesadelo.
Ele se sentou desconfortavelmente na cadeira do consultório, meio olhando para o doutor, meio olhando para o nada. O médico olhou para ele com um ar bondoso de quem tem o dia todo para ouvir o que ele tivesse que dizer, não interessava o quão idiota soasse. Tiago olhou de volta, mas desviou logo, localizando uma mancha na tinta que cobria as paredes do consultório e se focando nela.
Passaram-se alguns minutos, e o doutor resolveu fazer a primeira aproximação — calma e contidamente, sem pressa.
“Tiago, você tem estado conosco aqui há algum tempo, não é?”
Ele finalmente olha para ele, e murmura um “é...” sem muita força, o que permite que Roberto continue a se aproximar, como a um animal acuado no canto, sem querer assustá-lo.
“Pode me contar algo interessante que tenha acontecido nos últimos dias? Uma das enfermeiras me falou que você fez um desenho lindo dela. Você gosta de desenhar?”
Ele olhou para Roberto, com um novo interesse.
“Gosto... Gostava...”, diz.
“E por que perdeu o interesse em desenhar, Tiago?”, pergunta.
“É uma longa história, doutor...”
Ele se remexe na cadeira, mais desconfortável agora, mas sentindo uma vontade nova de contar ao médico o que não tinha contado a ninguém.
“Tem algo a ver com os seus pesadelos?”, diz o médico, “O motivo de você estar aqui conosco?”
“Sim”, diz ele.
“Pode contar para mim o que quiser, Tiago”, diz, “Estou aqui para te ouvir, sem julgar, nem comentar, só ouvir”.
“Tudo bem...”, e começa a contar sua história. O doutor aperta o botão da gravação escondido debaixo da mesa, para não intimidá-lo, preparando-se para ouvir o que ele tinha para contar.

“Eu e Marcos éramos melhores amigos”, começou, sentindo a força para falar, sabendo que, agora que começara, seria difícil parar. “Desde o ensino fundamental, na escola pública em que estudávamos.
“Sempre tivemos outros amigos e namoradas, claro, mas nossa relação era mais profunda do que mera amizade. Era mais profunda e mais diferente de qualquer relação que você conheça.
“Não me leve a mal, não era nada sexual — se foi isso que eu dei a entender —, era mais uma coisa de irmãos. Não de criação, ou de sangue. Irmãos de mente.
“Às vezes... Não sei como explicar. O senhor vai achar que é parte do que me trouxe para cá, mas não é, doutor, não é.
“Ou talvez até seja. Não sei mais. Eu juro que não sei mais”.
Ele cobre o rosto com uma das mãos, esfregando os olhos, e depois olha para o médico, com uma expressão que só podia ser entendida como desespero e desorientação — não eram a mesma coisa?
“Às vezes — lá vai — eu sabia de coisas que eu simplesmente não podia saber, antes de ele me contar. E ele também.
“Era como uma sincronia, entende? Não acontecia com outras pessoas — pelo menos eu não conseguia com mais ninguém —,  só entre nós dois.
“De qualquer forma, os anos passaram e nenhum de nós conseguiu entrar para a faculdade, ou arrumar empregos fixos, então passamos para uma vida de crimes pequenos, furtos em geral, nada muito sério.
“Passamos a pichar por aí. Éramos ambos muito bons, mas Marcos era melhor. Eu sempre sentia que as figuras que ele desenhava nos muros podiam simplesmente ganhar vida e sair por aí.
“Elas não eram vívidas, nem realistas, doutor, não pareciam mais fotografias do que pinturas a óleo. Mas sim, davam a impressão de estarem vivas”.
Ele suspirou, cobrindo mais uma vez o rosto com aquele gesto de cansaço, expondo sua expressão de desespero e desorientação e retomou a história, dessa vez dando um salto até acontecimentos de três anos antes, dois anos antes de ele entrar para o hospital psiquiátrico.
“Um dia ele me disse que teve uma visão num sonho de um desenho especial, que queria fazer no muro da nossa antiga escola, perto da praça onde tem aquele homem parado olhando o horizonte, encarando nada mais que prédios e mais prédios naquela direção, tão distante de realmente ver o horizonte.
“Não acontecia sempre, mas dessa vez eu vi na minha cabeça a imagem perfeitamente. Era uma pessoa sorrindo, de olhos abertos, olhando para o espectador.
“Digo pessoa, doutor, porque a figura não tinha nem sexo, nem idade. Talvez nem fosse uma pessoa, afinal de contas.
“A princípio”, diz, passando a mão nos cabelos a apoiando os cotovelos nos joelhos, se aproximando do médico, “não achei nada de mais na figura. Mas Marcos queria fazê-la, então eu deixei.
“Se arrependimento matasse, doutor, eu já teria morrido mais vezes do que se pode contar. Às vezes sonho com aquele momento, e eu sinto uma vontade enorme de gritar ‘Não! Pare! Não faça isso!’. Mas já é tarde demais, doutor. Tarde demais.
“Na noite seguinte, estávamos na frente da escola, perto de uma praça vazia. Ninguém a vista em nenhuma direção. Começamos a desenhar.
“Pegamos as tintas e preparamos a parede. Na primeira passada de tinta, eu senti que algo diferente estava no ar. Um formigamento no ar, sabe? Acho que não. Nunca vou conseguir descrever aquela situação para ninguém.
“Ele quis começar pelo sorriso. Eu achei estranho ele começar por aquela parte, sendo que nem tínhamos feito o rosto ainda, mas, mais uma vez, eu deixei que ele fizesse o que queria. O desenho era dele, afinal.
“Duas horas se passaram, e já estávamos desenhando o resto do rosto, exceto os olhos. ‘Os olhos a gente faz por último, viu?’, ele disse, e eu aceitei.
“Mas havia algo de indevidamente estranho naquele desenho. A cada segundo que passava, ele ia mudando. Eu sentia aquele sorriso ficando maior e maior, mais e mais aberto, revelando mais e mais dentes, mais e mais, mais e mais, mais e mais...”
Ele estava tremendo visivelmente, com medo da visão. Dr. Roberto estava ficando um pouco receoso com aquela história. Começava a desejar que a hora que eles tinham acabasse. Olhou para o relógio discretamente — tick, tack —, e viu que faltavam apenas dez minutos para que ele pudesse mandar Tiago embora e receitar uma boa dose de remédios para dormir — talvez ele até pegasse alguns para si mesmo, mas mantinha a discrição.
“Tudo bem, tudo bem. Sem pressa”, diz, “Acha que consegue continuar?”
Ele suspira, mas balança a cabeça afirmativamente.
“Eu...”, pigarreia, “Eu continuei até certo ponto, quando íamos começar os olhos. Mas então eu decidi não continuar. Não queria que aquela coisa pudesse me ver. A idéia me fez, e ainda faz, ficar com medo.
“Ele discutiu comigo e brigou. Dizia que, agora que tinha começado, teria que terminar, que não aceitaria que eu simplesmente abandonasse o projeto pela metade.
“Eu olhei para o relógio, mas ele tinha parado de funcionar. Devia ser umas quatro da manhã, mas achava que podia chegar em casa antes de amanhecer”.
Ele afundou na cadeira, olhando o médico nos olhos.
“Nunca mais vi Marcos.
“Lembro de ele ter ficado lá para completar o desenho, mas não sei o que aconteceu com ele. Nem a polícia.
“Procuraram ele por meses, sabia? Não acharam nada. Ele havia sumido e deixado todas as latas de tinta na frente da imagem.
“Passei pela praça um dia, a caminho de uma lanchonete que aparentemente estava empregando, e vi o desenho. Algo nele ficava me chamando, e eu senti que talvez finalmente pudesse resolver aquilo, então eu me desviei do caminho para aquela figura.
“Ao chegar lá, doutor...”
Não termina. Respira fundo e contém as lágrimas. Recomeça.
“Ela estava completa, pelo menos à primeira vista. Tinha dois olhos arregalados no que podia ser tanto surpresa, quanto sarcasmo, quanto desespero, quanto assassínio. Você escolhe, doutor. Eu vi tudo aquilo naqueles olhos maníacos.
“O sorriso não era mais um sorriso. Era uma boca aberta numa risada constante. Era uma figura que gargalhava de olhos abertos, doutor. Olhos bem abertos, zombando de nós, fascinando-nos naquele olhar assassino, nos fazendo — ah, que ironia, não? Enlouquecer, doutor. Ela nos fazia enlouquecer, caso fitássemos o fundo dos olhos dela.
“Mas não estava completa. Eu sabia disso. Vi assim que cheguei mais perto. Faltava o acabamento, o que fazia o desenho durar, e ficar bem definido. Esse não tinha nada daquilo. Eu sabia que ele não duraria quinze anos naquela parede, mas sabia que aquela figura tinha seus próprios métodos de manter-se viva, não é? Não se chega nesse nível sem saber uma ou duas coisas sobre sobrevivência.
“Desde aquele dia, eu comecei a sonhar com ela.
“Ela está em todo lugar, e me chama. Zomba de mim e me chama. Éramos uma dupla, não? Quer que eu a termine. Quer que sua existência nesse mundo seja indelével, quer finalmente cumprir seu projeto de tantos anos – milênios, se quer saber a minha opinião.
“Uma vez eu fui. Foi mais ou menos um mês depois de vê-la na praça. Levei minhas tintas, e estava pronto para pôr um fim naquela coisa toda.
“Estava pronto para atender seu chamado, entende? Estava pronto para terminar a porra do desenho e que se dane o mundo...
“Mas, quando eu cheguei lá, e olhei a figura no fundo daqueles olhos cheios de vida e perfídia, e vi o que tinha feito com Marcos. Na verdade, não me lembro do que vi naquele dia. Devo ter bloqueado da memória, doutor, mas, por favor, não tente me fazer lembrar. Eu não quero lembrar”.
Dr. Roberto estava inquieto e suando frio naquele terno. Olhou para o relógio. Três minutos? Como? Estavam lá há pelo menos quatro horas! Por que o tempo estava passando tão devagar? Ele estava dividido. Boa parte dele queria expulsar Tiago do consultório e tirá-lo do hospital psiquiátrico para sempre, nunca mais vê-lo. Outra parte, igualmente forte, não conseguia resistir à tentação de saber o final.
“Eu usei toda a minha força, e consegui pegar a tinta preta. Pintei por cima da figura um grande bloco preto, e continuei até esvaziar a lata. Depois fui embora, correndo.
“No dia seguinte, doutor, eu resolvi passar na praça e ver a reação das pessoas ao verem aquela figura horrível coberta pelo bloco preto. Na primeira vez que fui lá, as pessoas sempre desviavam um pouco, e evitavam o muro em que ela estava. Na verdade, algumas pessoas de carro simplesmente não passavam por lá. Preferiam dar a volta no quarteirão para voltar ao cominho original.
“Pois bem, ao chegar lá, você não conseguiria imaginar a minha surpresa: ela estava de volta. Como se nada tivesse acontecido, o desenho ainda estava na parede.
“Foi a primeira vez que notei que seus olhos seguiam você aonde quer que você fosse. Ela estava olhando diretamente para mim, na sua risada ensandecida, desprezando meus esforços.
“Eu corri, doutor. Eu corri.
“Não saí da cama o dia todo.
“Comecei a ver a imagem em todo lugar. Em cada poça d’água, em cada mancha, em casa folhagem, em cada nuvem. Ela estava em todo lugar, me olhando, me encarando, louca para me devorar se eu olhasse de volta”.
Ele estava chorando e não percebia. Nem olhava mais para o médico, mas sim encarava a parede branca detrás dele. O médico olhou para o relógio de novo. Um minuto. Graças a deus.
“Eu passei quase um mês sem dormir depois daquilo. Fiquei viciado em drogas que me dessem energia, qualquer coisa que me tirasse o sono, que me impedisse de dormir. Nunca usei drogas que me alucinassem. Tenho certeza de que a única coisa que veria seria ela, a figura.
“O resto da história você sabe. Passei um ano sofrendo com aquelas visões, sem nem dormir, nunca com algum emprego. Foi quando tive meu ataque que vocês me levaram para cá.
“Estava na rua, perto da escola, perto dela, e comecei a ouvir a voz da criatura. Não sei por que fui lá, acho que ela me arrastou inconsciente para lá. Naqueles tempos, eu andava sem rumo, quase mendigo. Ela ria horrendamente de mim. Ria, ria, ria, como se o meu ataque de pânico fosse a coisa mais engraçada do mundo.
“Eu comecei a gritar e babar. Caí no chão, chorando e gritando para que ela parasse. Não me lembro de mais nada antes de acordar amarrado a uma maca desse hospital”.
Ele olha para o médico, que simplesmente o olha de volta, sem saber o que dizer.
Ele olha para o relógio e vê que o tempo dele finalmente acabou.
“Tiago”, diz, se levantando da cadeira, “infelizmente nossa hora expirou. Na próxima sessão nós vamos falar mais sobre o incidente, pode ser?”.
“Pode, acho...”, diz o outro, “Mas eu não sei. Eu tenho começado a esquecer alguns detalhes. Acho que tem alguém do meu lado nessa história, apagando minha memória pouco a pouco. Gosto de pensar que um dia eu não vou nem lembrar mais de nada.
“Infelizmente, acho que isso também significa esquecer do Marcos”.
Vai embora um tempo depois, deixando o médico sozinho com seus pensamentos.
Era lógico que tudo era um delírio dele, não é? Todo aquele relato era surreal demais para ser verdade. Não era?
Certamente, ele não encontraria nada caso fosse até a praça onde tem a estátua de um homem olhando o horizonte. Não haveria nenhuma figura enlouquecida na parede.
Haveria uma escola, e provavelmente estaria toda pichada. Mas não haveria aquilo.
Haveria?
Doutor Roberto brincou com aquela pergunta por alguns momentos.
Não era a razão que o fazia pensar assim. Era o medo.
Medo de que houvesse realmente algo lá.
Se fosse lá, tinha certeza de que encontraria nada.
E ele foi.

Semanas depois, Tiago senta na sua cama, se sentindo meio mal.
O jornal matinal está na sua cabeceira.
Ele olha a primeira página, com espanto.
Na primeira página, uma matéria sobre o Dr. Roberto.
A reportagem dizia que ele tinha ido a uma escola velha e ateado fogo ao lugar, deixando-se morrer lá, sem deixar nenhum bilhete de suicídio nem nada.
Tiago olha com uma expressão confusa para a foto das ruínas.
O fogo queimou por 13 horas antes de apagar, lê. Ele nota os muros destruídos e sente um impulso de felicidade enorme dentro dele, mas não sabe por quê.
Ele joga o jornal de lado, sem entender o porquê daquilo tudo.
Ele não reconheceu nem a praça com a estátua do homem olhando o horizonte.
Tiago já não lembrava.

3 comentários:

  1. Postá-lo no blog arruinou uma formatação quase perfeita, mas valeu a pena =D

    ps: yuri me ajudou a pensar no final, e a ideia do título é toda de pedro :)

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  2. Muito bom. Gostei muito. Me fez lembrar o livro q vc me emprestou. :x

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  3. Fez lembrar? Eu não acho que faça, mas você é a leitora, então deve ter alguma razão em pensar assim.
    Esse conto me atacou de surpresa num ônibus - justamente como em O Porto e a Luz da Lua, só que nesse eu estava ouvindo a Moonlight Sonata -, quando eu vi uma pichação numa ponte. Não tinha nada de especial lá, só me lembrou de que eu nunca tinha feito nenhum conto sobre esse assunto, tampouco já tinha lido algum sobre ele. Daí a imagem veio de um jeito tão absoluto na minha mente que não consegui pensar em outra coisa até que chegasse em casa, tomasse banho (lógico), e começasse a escrever.
    =D

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