Tick,
tack,
fez o relógio – daqueles antigos, redondos, com dois sinos em cima.
Era
para ser um som relaxante, ele achava. Para os outros, talvez — talvez até
mesmo para o próprio Doutor Roberto —, mas para ele era um pesadelo.
Ele
se sentou desconfortavelmente na cadeira do consultório, meio olhando para o doutor,
meio olhando para o nada. O médico olhou para ele com um ar bondoso de quem tem
o dia todo para ouvir o que ele tivesse que dizer, não interessava o quão
idiota soasse. Tiago olhou de volta, mas desviou logo, localizando uma mancha
na tinta que cobria as paredes do consultório e se focando nela.
Passaram-se
alguns minutos, e o doutor resolveu fazer a primeira aproximação — calma e contidamente,
sem pressa.
“Tiago,
você tem estado conosco aqui há algum tempo, não é?”
Ele
finalmente olha para ele, e murmura um “é...” sem muita força, o que permite
que Roberto continue a se aproximar, como a um animal acuado no canto, sem querer
assustá-lo.
“Pode
me contar algo interessante que tenha acontecido nos últimos dias? Uma das
enfermeiras me falou que você fez um desenho lindo dela. Você gosta de desenhar?”
Ele
olhou para Roberto, com um novo interesse.
“Gosto...
Gostava...”, diz.
“E
por que perdeu o interesse em desenhar, Tiago?”, pergunta.
“É
uma longa história, doutor...”
Ele
se remexe na cadeira, mais desconfortável agora, mas sentindo uma vontade nova
de contar ao médico o que não tinha contado a ninguém.
“Tem
algo a ver com os seus pesadelos?”, diz o médico, “O motivo de você estar aqui
conosco?”
“Sim”,
diz ele.
“Pode
contar para mim o que quiser, Tiago”, diz, “Estou aqui para te ouvir, sem
julgar, nem comentar, só ouvir”.
“Tudo
bem...”, e começa a contar sua história. O doutor aperta o botão da gravação
escondido debaixo da mesa, para não intimidá-lo, preparando-se para ouvir o que
ele tinha para contar.
“Eu
e Marcos éramos melhores amigos”, começou, sentindo a força para falar, sabendo
que, agora que começara, seria difícil parar. “Desde o ensino fundamental, na
escola pública em que estudávamos.
“Sempre
tivemos outros amigos e namoradas, claro, mas nossa relação era mais profunda
do que mera amizade. Era mais profunda e mais diferente de qualquer relação que
você conheça.
“Não
me leve a mal, não era nada sexual —
se foi isso que eu dei a entender —, era mais uma coisa de irmãos. Não de
criação, ou de sangue. Irmãos de mente.
“Às
vezes... Não sei como explicar. O senhor vai achar que é parte do que me trouxe
para cá, mas não é, doutor, não é.
“Ou
talvez até seja. Não sei mais. Eu juro que não sei mais”.
Ele
cobre o rosto com uma das mãos, esfregando os olhos, e depois olha para o
médico, com uma expressão que só podia ser entendida como desespero e desorientação
— não eram a mesma coisa?
“Às
vezes — lá vai — eu sabia de coisas que eu simplesmente não podia saber, antes
de ele me contar. E ele também.
“Era
como uma sincronia, entende? Não acontecia com outras pessoas — pelo menos eu
não conseguia com mais ninguém —, só
entre nós dois.
“De
qualquer forma, os anos passaram e nenhum de nós conseguiu entrar para a
faculdade, ou arrumar empregos fixos, então passamos para uma vida de crimes pequenos,
furtos em geral, nada muito sério.
“Passamos
a pichar por aí. Éramos ambos muito bons, mas Marcos era melhor. Eu sempre
sentia que as figuras que ele desenhava nos muros podiam simplesmente ganhar
vida e sair por aí.
“Elas
não eram vívidas, nem realistas, doutor, não pareciam mais fotografias do que
pinturas a óleo. Mas sim, davam a impressão de estarem vivas”.
Ele
suspirou, cobrindo mais uma vez o rosto com aquele gesto de cansaço, expondo
sua expressão de desespero e desorientação e retomou a história, dessa vez dando
um salto até acontecimentos de três anos antes, dois anos antes de ele entrar
para o hospital psiquiátrico.
“Um
dia ele me disse que teve uma visão num sonho de um desenho especial, que
queria fazer no muro da nossa antiga escola, perto da praça onde tem aquele
homem parado olhando o horizonte, encarando nada mais que prédios e mais
prédios naquela direção, tão distante de realmente ver o horizonte.
“Não
acontecia sempre, mas dessa vez eu vi na minha cabeça a imagem perfeitamente.
Era uma pessoa sorrindo, de olhos abertos, olhando para o espectador.
“Digo
pessoa, doutor, porque a figura não tinha nem sexo, nem idade. Talvez nem fosse
uma pessoa, afinal de contas.
“A
princípio”, diz, passando a mão nos cabelos a apoiando os cotovelos nos joelhos,
se aproximando do médico, “não achei nada de mais na figura. Mas Marcos queria
fazê-la, então eu deixei.
“Se
arrependimento matasse, doutor, eu já teria morrido mais vezes do que se pode
contar. Às vezes sonho com aquele momento, e eu sinto uma vontade enorme de
gritar ‘Não! Pare! Não faça isso!’. Mas já é tarde demais, doutor. Tarde
demais.
“Na
noite seguinte, estávamos na frente da escola, perto de uma praça vazia. Ninguém
a vista em nenhuma direção. Começamos a desenhar.
“Pegamos
as tintas e preparamos a parede. Na primeira passada de tinta, eu senti que
algo diferente estava no ar. Um formigamento no ar, sabe? Acho que não. Nunca
vou conseguir descrever aquela situação para ninguém.
“Ele
quis começar pelo sorriso. Eu achei estranho ele começar por aquela parte,
sendo que nem tínhamos feito o rosto ainda, mas, mais uma vez, eu deixei que
ele fizesse o que queria. O desenho era dele, afinal.
“Duas
horas se passaram, e já estávamos desenhando o resto do rosto, exceto os olhos.
‘Os olhos a gente faz por último, viu?’, ele disse, e eu aceitei.
“Mas
havia algo de indevidamente estranho naquele desenho. A cada segundo que
passava, ele ia mudando. Eu sentia aquele sorriso ficando maior e maior, mais e
mais aberto, revelando mais e mais dentes, mais e mais, mais e mais, mais e
mais...”
Ele
estava tremendo visivelmente, com medo da visão. Dr. Roberto estava ficando um
pouco receoso com aquela história. Começava a desejar que a hora que eles tinham
acabasse. Olhou para o relógio discretamente — tick, tack —, e viu que faltavam apenas dez minutos para que ele
pudesse mandar Tiago embora e receitar uma boa dose de remédios para dormir —
talvez ele até pegasse alguns para si mesmo, mas mantinha a discrição.
“Tudo
bem, tudo bem. Sem pressa”, diz, “Acha que consegue continuar?”
Ele
suspira, mas balança a cabeça afirmativamente.
“Eu...”,
pigarreia, “Eu continuei até certo ponto, quando íamos começar os olhos. Mas
então eu decidi não continuar. Não queria que aquela coisa pudesse me ver. A
idéia me fez, e ainda faz, ficar com medo.
“Ele
discutiu comigo e brigou. Dizia que, agora que tinha começado, teria que
terminar, que não aceitaria que eu simplesmente abandonasse o projeto pela metade.
“Eu
olhei para o relógio, mas ele tinha parado de funcionar. Devia ser umas quatro
da manhã, mas achava que podia chegar em casa antes de amanhecer”.
Ele
afundou na cadeira, olhando o médico nos olhos.
“Nunca
mais vi Marcos.
“Lembro
de ele ter ficado lá para completar o desenho, mas não sei o que aconteceu com
ele. Nem a polícia.
“Procuraram
ele por meses, sabia? Não acharam nada. Ele havia sumido e deixado todas as
latas de tinta na frente da imagem.
“Passei
pela praça um dia, a caminho de uma lanchonete que aparentemente estava
empregando, e vi o desenho. Algo nele ficava me chamando, e eu senti que talvez
finalmente pudesse resolver aquilo, então eu me desviei do caminho para aquela
figura.
“Ao
chegar lá, doutor...”
Não
termina. Respira fundo e contém as lágrimas. Recomeça.
“Ela
estava completa, pelo menos à primeira vista. Tinha dois olhos arregalados no
que podia ser tanto surpresa, quanto sarcasmo, quanto desespero, quanto
assassínio. Você escolhe, doutor. Eu vi tudo aquilo naqueles olhos maníacos.
“O
sorriso não era mais um sorriso. Era uma boca aberta numa risada constante. Era
uma figura que gargalhava de olhos
abertos, doutor. Olhos bem abertos, zombando de nós, fascinando-nos naquele
olhar assassino, nos fazendo — ah, que ironia, não? Enlouquecer, doutor. Ela
nos fazia enlouquecer, caso fitássemos o fundo dos olhos dela.
“Mas
não estava completa. Eu sabia disso. Vi assim que cheguei mais perto. Faltava o
acabamento, o que fazia o desenho durar, e ficar bem definido. Esse não tinha
nada daquilo. Eu sabia que ele não duraria quinze anos naquela parede, mas
sabia que aquela figura tinha seus próprios métodos de manter-se viva, não é?
Não se chega nesse nível sem saber uma ou duas coisas sobre sobrevivência.
“Desde
aquele dia, eu comecei a sonhar com ela.
“Ela
está em todo lugar, e me chama. Zomba de mim e me chama. Éramos uma dupla, não?
Quer que eu a termine. Quer que sua existência nesse mundo seja indelével, quer
finalmente cumprir seu projeto de tantos anos – milênios, se quer saber a minha
opinião.
“Uma
vez eu fui. Foi mais ou menos um mês depois de vê-la na praça. Levei minhas
tintas, e estava pronto para pôr um fim naquela coisa toda.
“Estava
pronto para atender seu chamado, entende? Estava pronto para terminar a porra
do desenho e que se dane o mundo...
“Mas,
quando eu cheguei lá, e olhei a figura no fundo daqueles olhos cheios de vida e
perfídia, e vi o que tinha feito com Marcos. Na verdade, não me lembro do que
vi naquele dia. Devo ter bloqueado da memória, doutor, mas, por favor, não
tente me fazer lembrar. Eu não quero lembrar”.
Dr.
Roberto estava inquieto e suando frio naquele terno. Olhou para o relógio. Três
minutos? Como? Estavam lá há pelo menos quatro horas! Por que o tempo estava
passando tão devagar? Ele estava dividido. Boa parte dele queria expulsar Tiago
do consultório e tirá-lo do hospital psiquiátrico para sempre, nunca mais
vê-lo. Outra parte, igualmente forte, não conseguia resistir à tentação de
saber o final.
“Eu
usei toda a minha força, e consegui pegar a tinta preta. Pintei por cima da figura
um grande bloco preto, e continuei até esvaziar a lata. Depois fui embora, correndo.
“No
dia seguinte, doutor, eu resolvi passar na praça e ver a reação das pessoas ao
verem aquela figura horrível coberta pelo bloco preto. Na primeira vez que fui
lá, as pessoas sempre desviavam um pouco, e evitavam o muro em que ela estava.
Na verdade, algumas pessoas de carro simplesmente não passavam por lá.
Preferiam dar a volta no quarteirão para voltar ao cominho original.
“Pois
bem, ao chegar lá, você não conseguiria imaginar a minha surpresa: ela estava
de volta. Como se nada tivesse acontecido, o desenho ainda estava na parede.
“Foi
a primeira vez que notei que seus olhos seguiam você aonde quer que você fosse.
Ela estava olhando diretamente para mim, na sua risada ensandecida, desprezando
meus esforços.
“Eu
corri, doutor. Eu corri.
“Não
saí da cama o dia todo.
“Comecei
a ver a imagem em todo lugar. Em cada poça d’água, em cada mancha, em casa folhagem,
em cada nuvem. Ela estava em todo lugar, me olhando, me encarando, louca para
me devorar se eu olhasse de volta”.
Ele
estava chorando e não percebia. Nem olhava mais para o médico, mas sim encarava
a parede branca detrás dele. O médico olhou para o relógio de novo. Um minuto.
Graças a deus.
“Eu
passei quase um mês sem dormir depois daquilo. Fiquei viciado em drogas que me
dessem energia, qualquer coisa que me tirasse o sono, que me impedisse de
dormir. Nunca usei drogas que me alucinassem. Tenho certeza de que a única
coisa que veria seria ela, a figura.
“O
resto da história você sabe. Passei um ano sofrendo com aquelas visões, sem nem
dormir, nunca com algum emprego. Foi quando tive meu ataque que vocês me
levaram para cá.
“Estava
na rua, perto da escola, perto dela, e
comecei a ouvir a voz da criatura. Não sei por que fui lá, acho que ela me
arrastou inconsciente para lá. Naqueles tempos, eu andava sem rumo, quase mendigo.
Ela ria horrendamente de mim. Ria, ria, ria, como se o meu ataque de pânico
fosse a coisa mais engraçada do mundo.
“Eu
comecei a gritar e babar. Caí no chão, chorando e gritando para que ela parasse.
Não me lembro de mais nada antes de acordar amarrado a uma maca desse hospital”.
Ele
olha para o médico, que simplesmente o olha de volta, sem saber o que dizer.
Ele
olha para o relógio e vê que o tempo dele finalmente acabou.
“Tiago”,
diz, se levantando da cadeira, “infelizmente nossa hora expirou. Na próxima
sessão nós vamos falar mais sobre o incidente, pode ser?”.
“Pode,
acho...”, diz o outro, “Mas eu não sei. Eu tenho começado a esquecer alguns
detalhes. Acho que tem alguém do meu lado nessa história, apagando minha memória
pouco a pouco. Gosto de pensar que um dia eu não vou nem lembrar mais de nada.
“Infelizmente,
acho que isso também significa esquecer do Marcos”.
Vai
embora um tempo depois, deixando o médico sozinho com seus pensamentos.
Era
lógico que tudo era um delírio dele, não é? Todo aquele relato era surreal demais
para ser verdade. Não era?
Certamente,
ele não encontraria nada caso fosse até a praça onde tem a estátua de um homem olhando
o horizonte. Não haveria nenhuma figura enlouquecida na parede.
Haveria
uma escola, e provavelmente estaria toda pichada. Mas não haveria aquilo.
Haveria?
Doutor
Roberto brincou com aquela pergunta por alguns momentos.
Não
era a razão que o fazia pensar assim. Era o medo.
Medo
de que houvesse realmente algo lá.
Se
fosse lá, tinha certeza de que encontraria nada.
E
ele foi.
Semanas
depois, Tiago senta na sua cama, se sentindo meio mal.
O
jornal matinal está na sua cabeceira.
Ele
olha a primeira página, com espanto.
Na
primeira página, uma matéria sobre o Dr. Roberto.
A
reportagem dizia que ele tinha ido a uma escola velha e ateado fogo ao lugar,
deixando-se morrer lá, sem deixar nenhum bilhete de suicídio nem nada.
Tiago
olha com uma expressão confusa para a foto das ruínas.
O fogo queimou por 13 horas antes de
apagar,
lê. Ele nota os muros destruídos e sente um impulso de felicidade enorme dentro
dele, mas não sabe por quê.
Ele
joga o jornal de lado, sem entender o porquê daquilo tudo.
Ele
não reconheceu nem a praça com a estátua do homem olhando o horizonte.
Tiago
já não lembrava.
Postá-lo no blog arruinou uma formatação quase perfeita, mas valeu a pena =D
ResponderExcluirps: yuri me ajudou a pensar no final, e a ideia do título é toda de pedro :)
Muito bom. Gostei muito. Me fez lembrar o livro q vc me emprestou. :x
ResponderExcluirFez lembrar? Eu não acho que faça, mas você é a leitora, então deve ter alguma razão em pensar assim.
ResponderExcluirEsse conto me atacou de surpresa num ônibus - justamente como em O Porto e a Luz da Lua, só que nesse eu estava ouvindo a Moonlight Sonata -, quando eu vi uma pichação numa ponte. Não tinha nada de especial lá, só me lembrou de que eu nunca tinha feito nenhum conto sobre esse assunto, tampouco já tinha lido algum sobre ele. Daí a imagem veio de um jeito tão absoluto na minha mente que não consegui pensar em outra coisa até que chegasse em casa, tomasse banho (lógico), e começasse a escrever.
=D