terça-feira, 2 de agosto de 2011

A Rainha-Mariposa - Parte Três e Final


Espero que tenham gostado de lê-lo o quanto eu gostei de escrevê-lo :)

Acordou, e estava no céu. Na forma mais literal da palavra.
Voando acima das nuvens, carregado por aquela mulher, seguido por uma procissão de borboletas. Nem sentia mais os ferimentos. As asas dela batiam silenciosamente no ar, como vitrais vivos.
Ela riu um pouco, pois os seus cabelos castanhos e cacheados tinham caído no rosto de Rodrigo.
Ele levantou a cabeça, rindo com ela.
“Melissa, aonde vamos?”.
“Vamos a um lugar especial”, disse, “um jardim secreto”.
Ele pensou naquilo, enquanto via as nuvens passarem correndo por baixo de si.
Viam-se manchas de verde aqui e ali, surgindo furtivas entre o branco imaculado das nuvens. À frente, nada mais além do horizonte azulado, perpassado por algumas nuvens que subiam em colunas áureas. Tentou não olhar para baixo, mas era impossível se conter.
As borboletas seguiam calmamente atrás e ao lado deles.
“E é longe?”, perguntou, inseguro.
“Nem tanto.”, disse ela, rindo “Mas vamos dar uma guinada para cima agora! Segure-se!”.
Ele tentou reclamar, dizer que já estava sentindo vertigens àquela altura, que achava melhor que se mantivesse lá, mas os braços fortes da garota já o tinham apertado, e suas asas já trabalhavam rapidamente numa subida brusca, e suas palavras se perderam no vento forte.
As borboletas também subiram alto com eles.

– – – – –

Melissa voou com Rodrigo até um ponto em que não havia mais nuvens acima deles. Estavam voando acima de um compacto tapete de nuvens.
O sol parecia estar perto demais, e a luminosidade se tornava insuportável. Rodrigo teve que fechar os olhos e tapá-los com uma das mãos, enquanto Melissa dizia algo que não conseguiu ouvir.
”O que disse?”.
“Eu?”, perguntou a linda jovem, “Nada... Só reparei o quanto é bonito aqui em cima”.
Ele riu alto.
“Eu não posso ver nada, mas aposto que é muito bonito mesmo...
“Onde estamos indo, Melissa?”.
Ela ficou calada, e Rodrigo percebeu que já perguntara demais.
Relaxou, e só aproveitou a viagem, calmamente deslizando para um sono sem sonhos.
O sonho que ele tinha já estava com ele.


Quando acordou, Melissa chamou-lhe a atenção com um pequeno chacoalho.
“Vamos descer”.
Ele abriu os olhos e viu que ainda era manhã, e que pouco tempo havia se passado desde que caíra naquele sono cansado e estranho. “Deve ser a falta de oxigênio”, pensou.
Ela se inclinou para baixo, juntamente com todas as outras borboletas, e ele logo estava de cabeça para baixo no ar, descendo como um torpedo. As asas curvando-se numa flecha nas costas de Melissa; seus longos e castanhos cabelos puxados pelo vento.
Eles entraram numa nuvem cinza, e, como uma flecha, saíram de lá.
Viu o verde do chão se formando rapidamente no mundo branco de nuvens.
Viu uma grande clareira.
Um jardim.
Borboletas.
Ela se curvou subitamente de novo, e então estavam de pé, as asas dela batendo levemente, com eles pairando no ar até que aterrissassem.
Ele caiu no chão de costas, e logo se sentou. Ela ficou de pé na sua frente.
Por um momento, apenas se olharam.
Então, ele tomou conhecimento do que havia ao seu redor.
Era realmente um jardim secreto.

– – – – – –

Era lindo.
Flores por todo lado, grama, árvores. Insetos, abelhas, beija-flores, borboletas.
Bancos de pedra aqui e ali, para que casais pudessem sentar e namorar, envoltos por todo aquele espetáculo.
Rodrigo logo reconheceu aquele cenário.
“Eu... Eu conheço esse lugar”, disse, “Eu vinha aqui todas as quartas-feiras. Minha mãe me levava, quando eu era bem pequeno, lá na nossa terra natal, aqui na Bahia.
“Eu costumava sentar aqui mesmo, e tentava pegar as borboletas.
“Minha mãe sentava e observava, sorrindo para mim de quando em quando.
“Mas ela morreu há muito tempo, e tive que ir para Salvador, morar com o meu pai.
“Não vinha aqui há anos”.
Ela sorriu para ele, e deu dois passos à frente, ficando bem no centro do grande jardim.
“Você sente saudades disso aqui, não é?”.
Ele concordou com a cabeça, chorando um pouco.
Ela se curvou e apoiou as mãos nos joelhos, como faria com uma criança.
“Você ficaria aqui para sempre, não ficaria?”.
Chegou seu rosto mais perto do dele, e ele se levantou, mantendo a curta distância entre os dois.
“V-v-v-você faria isso?”, perguntou ele, com grandes olhos lacrimejantes.
“Tudo o que você quiser, meu amor”.
“Você é realmente um anjo” ele sorriu, entre lágrimas.
“Apenas... Deixe-me... Uma coisa...”.
“Qualquer coisa”.
“Qualquer coisa?”.
“Não interessa o quê”.
Ela chegou mais perto. Os olhos verdes se fincando nos dele, hipnotizando-o.
Abriu a boca numa conhecida expressão de beijo. Ele não hesitou, e chegou mais perto também.
À sua volta, o mundo perdeu luz. Não era mais manhã.
O mundo perdeu cor e forma. Não era mais um jardim colorido. Não era mais uma clareira.
O mundo adquiriu sua forma concreta. E não era bonita.
Um posto de gasolina à noite.
Cinco corpos desfigurados jogados num canto.
Rodrigo não notou nada daquilo. Somente avançou no beijo mortal.
A cada segundo que passava, a cada movimento que aquela criatura angelical fazia, a pele dela se rasgava como papel. Uma ilusão desfeita, como um truque revelado no fim do show de mágica.
Primeiro as pernas, antes sempre envoltas por aquele vestido rosa fraco, despontaram pouco a pouco como pedaços obscenos que deveriam ter ficado para sempre debaixo daquele vestido. Marrons e de formas duras, como pernas de insetos.
Os braços rasgaram aquela pele macia, branca, perfeita, e deles – e de boa parte do torso – saíram quatro braços cujas terminações não eram as bem cuidadas mãos de Melissa, mas puras garras, um deles com uma longa ponta ossuda, como uma espada natural dela.
As costas dela explodiram rapidamente, e as lindas asas de borboletas caíram no chão juntamente aos restos de pele, e delas saíram duas longas asas.
Não asas ornamentadas e bem-trabalhadas, como as antigas.
Asas toscas e marrons, escurecidas, e sem forma.
Asas de mariposa.
Por fim, o rosto e os cabelos finalmente se desfizeram no ar, aquele sorriso sincero no rosto de beleza incomum saindo como uma máscara que encobria algo que nem nos piores pesadelos alguém poderia ter visto – e era bem isso o que ela era.
O corpo que aquele ser que se parecia com uma mariposa humanóide – ou, como Rodrigo viria a chamá-la internamente, A Rainha-Mariposa – chamava de Melissa havia desparecido por completo, juntamente com toda a doçura que jamais tivera. E Rodrigo teria sido apenas mais um na lista dela, se não percebesse o golpe a tempo de pular para trás.
Pulou para trás e viu o horror em forma de inseto formando diante dos olhos.
Sua cabeça não era nem de longe o mais horrível naquele corpo deformado. O torso todo segmentado, com uma espécie de fluido entre as fendas articulatórias. Os quatro braços, a garra enorme e ossuda que saía de uma das mãos que aquela criatura tinha. As pernas igualmente blindadas caídas livremente pelo corpo suspenso no ar, flutuando pelas enormes asas de inseto.
Rodrigo rastejou para trás, temendo que o bicho se aproximasse. Olhou para os lados e viu que o que até então pensara ser borboletas, eram mariposas grandes e marrons, voando por todos os lados. Subitamente, soube de onde vinha o fedor que o deixara tão deprimido.
Girou-se num pulo e começou a correr com todas as forças que tinha. Olhou os corpos espalhados pelo posto de gasolina e tentou não pensar se seu fim seria parecido com o daquelas pessoas.
Mas ela só os matou, não os comeu”, pensou, tristemente – a certeza de que ela queria comê-lo.
A mariposa-rainha voou atrás dele, enquanto ele tentava se esconder na loja de conveniência do posto.
“Aquela pele... Aquele rosto, aquela beleza estranha... Não passava de um casulo? A lagarta faminta arranjando uma presa para comer após a saída daquele invólucro de ilusões?”, pensou, enquanto suas mãos nervosas abriam seu caminho até a lojinha de conveniência.  Caiu lá dentro como se o chão tivesse acabado de repente, e começou a rastejar até atrás de algumas prateleiras.
Tremendo de medo, ouviu a mariposa gigante quebrando as vitrines e a porta de vidro, seguida por uma nuvem de mariposas que invadiram o lugar.
A criatura soltou um grunhido sem forma e adentrou a loja, suas asas destruindo tudo à sua volta, e fazendo o ar inteiro amolecer com suas rajadas de vento.
Rodrigo se encolheu de medo. Que mais podia fazer? A mariposa era implacável, e ele tinha fugido para o único lugar sabem-se lá quantos quilômetros de casa.
Ele começou a chorar baixinho no seu canto escondido, sentindo os olhos da mariposa perscrutando a loja, à procura do jantar fugitivo.
Levantou os olhos e viu uma das centenas de mariposas que empestavam o lugar voando e olhando para ele.
“Não, amiguinha, não faça nada!”, pensou, mas a mariposa voou embora, voou até sua líder insana.
A lança ossuda do braço da Rainha-Mariposa perfurou completamente a estante em que se apoiava, bem ao seu lado.
A estante se levantou no ar, sacudida pelo braço-lança, e Rodrigo se viu completamente indefeso. Virou-se para a monstruosidade que estava tomando a paisagem e decidiu correr. Não sabia para onde, mas devia correr, devia aproveitar a chance única em que ela estava ocupada.
E ele correu.
Passou por debaixo das asas esvoaçantes da Rainha-Mariposa.
Rolou até as bombas e caiu no chão. A mariposa estava de volta, livre da estante.
Ela veio rapidamente, com um ar de quem já havia cansado de perseguir o oponente. Rodrigo se pôs de pé, enquanto via um dos braços da mariposa – o que tinha a lança de osso – se levantar e se preparar para o ataque, como um cavaleiro numa justa contra um inimigo desarmado.
“Uma chance”, pensou.
Na sua cabeça, a contagem regressiva começou.
3.
2.
1.
O braço da mariposa atacou de uma só vez, e Rodrigo se colocou atrás de uma das bombas.
Como uma flecha, o braço atravessou a bomba de gasolina por inteira.
Chegou em Rodrigo, que caiu para trás e começou a se afastar rapidamente.
A despeito do sangue que fluía rapidamente da sua barriga, ele conseguiu se afastar o suficiente da Rainha-Mariposa, agora brigando contra a bomba, presa firmemente no chão.
“Ó, bom Deus, se está aí, que o dono do posto tenha esquecido a bomba ligada”, pensou.
A mariposa gritou, e arrancou a bomba do chão com tudo, num último ato de glória, levantando-a no ar como um troféu, o cheiro rançoso de gasolina se espalhando pelo ar enquanto a mesma derramava-se sobre a rainha-inseto.
Sentiu nos bolsos, e viu que o isqueiro continuava lá. Riu um pouco.
Acendeu a chama e o atirou com tudo em cima da criatura.
Incendiou a gasolina no chão e na própria mariposa. A bomba explodiu numa bola de fogo que tomou conta de toda a visão.
Rodrigo talvez tivesse se queimado naquele fogo, mas isso pouco importava para ele.
“QUEIME NO INFERNO, SUA DESGRAÇADA!”, gritou com todas as forças, apreciando a vista da Rainha-Mariposa gritando e queimando, se autodestruindo, e queimando toda a legião de mariposas que a seguiam.
Deixou a cabeça cair no chão, deitado na areia do acostamento da estrada, esquecendo os sons do ambiente. Chegou a ouvir a doce voz de Melissa clamando por ajuda no meio do fogo. Ignorou-a até onde pôde, mas ela continuou chamando e gritando, e ele achava que aqueles gritos iam enlouquecê-lo.
Outra bomba finalmente explodiu, e foi o fim de toda aquela gritaria.
Rodrigo ficou deitado no chão, calmo e tranqüilo.
Sentia frio e sono.
“Aonde será que estou?”
Deixaria isso para depois.
De fato, só o que ele queria fazer agora era dormir.
Dormir e não sonhar mais.
Não com borboletas.

4 comentários:

  1. Por que ele não morreu? Grrr. Eu já sabia que ela ia tentar comê-lo, mas pensei que fosse conseguir, pra ficar bem macabro. Whatever. Eu gostei. :), como sempre os teus textos são bem descritivos e eu adorei toda a sucessão de descrições sobre o corpo estranho da R. Mariposa. :)!

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  2. Mas se ela comesse ele seria tosco, o conto acabaria com ela voando e indo embora para, sei lá, procurar outras vítimas, continuando à solta foreverly até voltar para o buraco daonde veio @.@
    além do mais, ah, depois eu te conto sobre o final :)

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  3. Parabéns, tudo de bom.

    ASSINADO: SANDY E JUNIOR

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  4. PORRA CAJU!
    aheauehuehaueauheuaheuaheuahuaheuaheuaa

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