domingo, 5 de fevereiro de 2012

A coda de uma vida oca.

Ele senta na cama, sem olhar para nenhum lado.
Ele senta e olha para o chão, cinza, acarpetado.
A mulher ainda dorme, e rola para o espaço que ele antes ocupava.
Ele vira o pescoço e olha o rosto dela, olhos cobertos: ainda era noite para ela.
Vagabunda.
Ele se levanta, mecanicamente.
Banho.
Roupas.
Café.
Dentes.
Mecanicamente.
Arrumado, ele pega o terno, e olha a mulher sentada, tomando café.
Ele a ama.
Vagabunda.


Trabalho.
Os colegas dizem "oi", "oi".
"Bom dia".
Entra no seu cubículo e analisa a pilha de papéis sentada do lado do computador.
Ele olha folha a folha a pilha, lendo as palavras impressas em preto no branco.
Revisar o relatório disso, ampliar as fontes daquilo, editar.
Memorandos.
Não haverá mais pausa para o café devido à falta de produtividade.
Demissões no setor dele.
Possível rebaixamento de salários - a ser debatido pelo setor de RH.
Ele olha para aqueles papéis e sente algo dentro dele.
Algo clicando, pulsando, ameaçando explodir.
Ele olha para a pilha de papéis e vê nela tudo que tem de errado na sua vida.
Todos os seus demônios.
Alguém passa rápido,sem nem olhar para o lado, e joga uma nova folha de papel na pilha de folhas de papel.
Uma única folha de papel, repousando desastrosamente numa pilha de erros, erros, e mais erros.
Algo explode dentro dele, queima, quebra, e uma onda de ódio inesgotável bate na parede de seu corpo.
Sua expressão não muda.
Ele vê a pilha de papéis e não faz nada.
Mas por dentro ele queima, por dentro ele grita, grita, grita.
Ele vê a pilha de papéis de novo, e puxa qualquer um.
Ele tem trabalho a fazer.


Em casa, sem jantar.
Ela não está.
Não tem ninguém naquele apartamento.
Mal tem ele mesmo.
Esquenta comida congelada no microondas.
Come sem vontade. 
Ela ainda não está.
Ela está com aquele amigo dela.
O garotão alto com quem ele a viu no estacionamento um dia.
Ela disse que ele era um amigo.
"Só um amigo".
Irmão de uma amiga.
Ela o trai.
Ele sabe disso.
Mas ele a ama.
Ela sabe disso.
Vagabunda.

Deita na cama e não consegue dormir.
Faz mais de um mês que não dorme direito.
Não consegue dormir.
Engoliu três pílulas e não consegue dormir.
Ela ainda não chegou.
Será que ainda...

Manhã seguinte, ele acorda e senta na cama.
Ela dorme do seu lado, olhos cobertos.
Ele se levanta, e abre a gaveta da mesinha ao seu lado.
Ele vê as pílulas rolando livremente na gaveta.
Tinha esquecido a tampa aberta.
Ele vê a arma na gaveta, sem uso.
Fecha a gaveta.
Banho.
Roupas.
Café.
Dentes.
Ela ainda dorme.
Ele se senta na cama e aponta a arma para ela.
Aponta bem no meio de seus olhos cobertos.
Vai atirar?
Não.
Ele a ama.
Vagabunda.
Ele a ama demais.
Olha para o cano vazio da arma, o cano escuro e vazio da arma.
Não deixa bilhetes.
Não tem amigos.
Nem o que dizer.
Olha para o cano vazio da arma e atira.
Atira e não o vê mais.

2 comentários:

  1. Bem, também demorei bastante para comentar aqui. Mas, sim, gostei da imagem cinza e putrefeita que este pequeno conto me mostrou. Lembrou-me uma fic que escrevi onde o personagem principal também se mata ao final. Porque matar-se talvez não seja realmente o fim. Quem sabe um novo começo ou uma extensão da dor mundana. Bem, não sabemos. Fugi da noção do comentário, mas é porque hoje estou sem noção mesmo.

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